Da função do Papa e o Primado de S. Pedro

Mosaico da capela da Sicília Palatina

Sumário

  1. Introdução
  2. Apóstolo Pedro e os saltos lógicos romanos
  3. São Pedro e a Igreja Ortodoxa
  4. A Rocha é Pedro ou a Fé de Pedro?
  5. A função Universal de Pedro
  6. Apascentar as ovelhas é uma mensagem para um único Apóstolo?
  7. Os privilégios e limites da Igreja Romana no período primitivo
  8. Erros comuns dos romanos
  9. Algumas provas esporádicas
  10. Notas e Referências

Introdução

A função do Bispo de Roma na Igreja tem sido um dos maiores debates entre os cristãos de todo o mundo. As prerrogativas alegadas pelo Papado foram um dos motivos para a maior divisão da história, o Grande Cisma, que separou o mundo entre Igreja Católica Romana e Igreja Católica Ortodoxa, criando uma diferença fundamental entre o Ocidente e o Oriente.

A partir do Concílio Vaticano I, a maior divisão entre os romanos e ortodoxos passou a ser o Papado, pois foi nessa reunião onde a Infalibilidade Papal se tornou formal. Acima do tema da processão do Espírito Santo, que se iniciou na adição filioque (do latim, “e do Filho”) ao Credo Niceno-Constantinopolitano, ou acima de outras controvérsias que culminaram nessa divisão, como o uso do pão ázimo, batismo por aspersão e etc; o Papado passou a ser a maior objeção a reunificação das Igrejas. E até antes do Vaticano I, quando a Infalibilidade Papal começou a dar o ar da graça, Nilo Cabasilas, sucessor de São Gregório Palamas como bispo de Tessalônica, já escrevia contra as afirmações do Bispo Romano ser superior aos Concílios Ecumênicos e não ter autoridade maior que ele próprio, declarando que a divisão da Igreja começou justamente com a cegueira do Papa sobre sua função na Igreja. Em seu trabalho sobre o Grande Cisma, Cabasilas escreve:

“A principal divisão entre os latinos e o nosso povo [ortodoxos] foi sua falta de vontade de submeter os objetos de discórdia ao júri de um Concílio Ecumênico, e seu desejo de se tornar o único mestre e juiz, deixando o restante de nós ao cargo de meros pupilos que são invalidados por sua opinião.”[1]

A Igreja Ortodoxa nunca aceitou uma jurisdição universal, seja de Roma ou de outra Sé Apostólica, quem dirá a Infalibilidade do Papa em matéria de Fé.

Nesse ponto, os protestantes comungam dos mesmos ideais, ou, pelo menos, bebem de muito da argumentação ortodoxa, que precedeu os questionamentos reformados séculos antes de Lutero. As diferenças entre as posições reformadas e ortodoxas são evidentes; nem tudo comungamos uns com os outros. Contudo, se tratando do Papado, temos semelhanças visíveis, e, justamente por isso, uma ortodoxa está em uma mídia protestante para expor os pontos da minha Igreja, a fim de contrapor algumas das inverdades papais.

Mas, afinal, qual a base argumentativa dos ortodoxos para negar tais prerrogativas?

O presente texto pretende abordar a visão “oriental” sobre o Papado, delimitando os direitos e privilégios da Sé de Roma nos primeiros séculos, tal como a função de São Pedro na Igreja e provas concretas de que as alegações papais da atualidade são anticanônicas.

1 — Apóstolo Pedro e os saltos lógicos romanos:

Logo na fundamentação básica do Papado há um erro gigantesco: não levar em conta que existem outras Sés Petrinas. A definição dogmática do Vaticano I, ao fundamentar a Infalibilidade do Papa, cita a autoridade de São Pedro, sendo o Papa herdeiro direto desse trono:

“Ensinamos e definimos que é um dogma divinamente revelado o que o pontífice romano fala ex cathedra, ou seja, no exercício do cargo de pastor e médico de todos os cristãos, em virtude da sua suprema autoridade apostólica, define uma doutrina a respeito da fé ou da moral a ser sustentada pela Igreja Universal, pela assistência divina que lhe foi prometida no Beato Pedro, possui aquela infalibilidade com que o Divino Redentor desejou que sua Igreja fosse dotada de definir a doutrina relativa à fé ou à moral, e que, portanto, tais definições do pontífice romano sejam por si mesmas, e não pelo consentimento da Igreja, irreformáveis.”[2]

E não só nesse trecho, mas no restante do documento inteiro é citada e referida a Apostolicidade Petrina, que culmina (ou deveria) na Infalibilidade de Roma. O problema aqui é que em nenhum momento o Papa, falando infalivelmente, explica como Alexandria e Antioquia não possuem as mesmíssimas prerrogativas que Roma arroga para si. Mesmo ignorando o título de “infalível” a Pedro e a anátema aos que consideram a Igreja (todos os apóstolos em união) infalível, não somente Pedro [3] — erros que serão posteriormente abordados — , ainda assim, a sucessão Petrina nunca esteve somente em Roma, e absolutamente nenhum santo primitivo falou isso, mas muito pelo contrário:

São João Crisóstomo, Doutor da Igreja de acordo com os próprios romanos, diz:

“Uma das prerrogativas da nossa cidade [Antioquia] é ter recebido São Pedro como seu mestre, o líder dos apóstolos. Foi justo para aquela que foi a primeira a ser adornada com o nome de “cristão”, recebendo assim, o primeiro dos apóstolos como seu pastor. Mas embora o tenhamos recebido como professor, não o retemos até o fim, mas o entregamos à Roma imperial. Ou melhor, nós o retemos até o fim, pois embora não retenhamos o corpo de Pedro, retemos a fé de Pedro, e retendo a fé de Pedro, temos o próprio Pedro.” [4]

Ora, São Crisóstomo explicita que Antioquia foi fundada pelo Apóstolo Pedro, e reconhece que apesar de não ter morrido ali, a fundação Petrina permanece e a morte de Pedro ter sido em Antioquia ou não, em nada interfere na Sucessão Apostólica.

Esse é um erro comum dos romanos: ao tentar provar que as outras Sés Petrinas não são, de fato, Petrinas, acham malabarismos para justificar como apenas Roma procede de São Pedro, e uma das artimanhas mais comuns é usar o argumento de que São Pedro morreu em Roma. O interessante é que nenhum latino jamais foi capaz de provar que a Igreja Primitiva reconheceu alguma superioridade em Roma por ser onde São Pedro morreu. O que parece aqui é que os romanos, ao fazer esse argumento, não entendem como a Sucessão Apostólica se dá. Cito aqui Tertuliano, que explica muito bem como esse importante fenômeno acontece:

“Se aparecer alguma heresia com a intenção de ter suas origens em tempos apostólicos, de modo que pareça uma doutrina entregue pelos próprios apóstolos, porque eles são, eles [hereges] dizem, daquele tempo, nós podemos dizer-lhes: que nos mostrem as origens de suas igrejas, que nos mostrem a ordem de seus bispos em sucessão desde o começo, de modo que seu primeiro bispo tenha como autor e antecessor um dos apóstolos ou dos homens apostólicos que trabalharam em estreita colaboração com os apóstolos. Porque é assim que as igrejas apostólicas transmitem suas listas: como a igreja de Esmirna, que sabe que Policarpo foi colocado lá por João; como a igreja de Roma, onde Clemente foi ordenado por Pedro. Assim, todas as outras igrejas que tiveram, lhes mostram em que tem as raízes apostólicas, tendo recebido o episcopado pela mão dos apóstolos.” [5]

Claro que nenhum romano sério fala que a Apostolicidade se dá por morte — ou não deveria, mas conforme vamos ver no caso do Cardeal Belarmino, isso não parece tão óbvio — , mas o pensamento citado acima só pode levar a isso. Antioquia prossegue sendo Petrina, conforme ditado pelo consenso do que é a Sucessão Apostólica. Roma pode ter o martírio de Pedro e de mais quem quiser, isso não a fará mais Petrina, e nem tirará a condição de ser fundada pelo líder dos apóstolos das outras cidades. Ao Concílio do Vaticano I citar a sua fundação, não leva em conta que mais outras duas cidades podem reivindicar as mesmas prerrogativas tanto elencadas pelo Pastor Aeternus. Se a condição para ser infalível é proceder de Pedro, então há três Sés infalíveis, e não apenas uma (Roma), como o Vaticano I arroga para si.

Fazendo esse pequeno adendo, que é óbvio para latinos estudados, peço permissão para fazer outro. Esse argumento específico me choca em particular pela falta de cuidado com o próprio Cristo. A única Sé que recebe algum privilégio por ser onde alguém morreu é Jerusalém, por ser o local onde o próprio Deus morreu e cumpriu sua expiação. Aplicar essa condição à Roma beira a heresia, comparando o Cordeiro de Cristo com Apóstolo Pedro, como se Roma, por ser onde São Pedro morreu, tivesse o direito de ter a mesma prerrogativa de Jerusalém, a cidade onde Deus morreu. Isso é ignorar que Jerusalém, e apenas Jerusalém, possui essa honra de ser “o local do martírio” pela morte de Cristo. Roma não recebe absolutamente nenhum direito por ser onde Pedro morreu, e aplicar a condição de uma à outra, é um descaso terrível. Tentar aplicar a condição que uma cidade recebe por ser onde Jesus foi Crucificado, para outra onde Pedro morreu, é tirar os privilégios de onde o Sacrifício do Cordeiro aconteceu.

É apenas onde Deus foi morto que recebe privilégio de ser o local de martírio. Nem Roma ou qualquer outra cidade recebe a mesma honra, e essa importância de martírio não se aplica à mais nenhuma Sé.

  • Em outra ocasião, São João Crisóstomo chama Flaviano, Patriarca de Antioquia, de “outro Pedro”, denotando sua Fundação Petrina: “Citando Pedro, outro Pedro vem à minha mente [falando de Flaviano de Antioquia], um pai e pastor comum a todos nós, que herda a virtude de São Pedro, e recebeu sua Sé [de Pedro] como herança.” [6]
  • Novamente, São João Crisóstomo fala que São Inácio de Antioquia herda a Sé de Pedro: “São Inácio foi sucessor de Pedro em seu principado” [7]. Curiosamente, nessa mesma obra, ele fala como Antioquia era professora de Roma na fé, explicando que as mortes de São Inácio, São Pedro e São Paulo foram em Roma justamente pela fraqueza presente na cidade [8].
  • São Jerônimo cita São Pedro como fundador de Antioquia em “De Viris Illustribus”, capítulo I: “Simão Pedro, filho de João, vindo da aldeia de Betsaida, na província de Galiléia, irmão de São André Apóstolo, e o próprio chefe dos apóstolos. Depois de ter sido bispo da igreja de Antioquia e, tendo pregado na diáspora — os crentes da circuncisão, em Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia — avançou para Roma no segundo ano de Cláudio para derrubar Simão, o Mago, e manteve a cadeira sacerdotal lá por vinte e cinco anos até o último, que é o décimo quarto ano de Nero. Recebeu em suas mãos a coroa do martírio, sendo pregado na cruz com a cabeça voltada para o chão e os pés erguidos, afirmando que era indigno de ser crucificado da mesma maneira que seu Senhor. Ele escreveu duas epístolas que são chamadas de católicas, a segunda das quais, por causa de sua diferença de estilo da primeira, é considerada por muitos como não sendo dele. Então, também o Evangelho segundo Marcos, que foi seu discípulo e intérprete, é atribuído a ele. Por outro lado, os livros, dos quais um é intitulado seus Atos, outro seu Evangelho, um terceiro sua Pregação, um quarto sua Revelação, um quinto seu Julgamento são rejeitados como apócrifos. Enterrado em Roma no Vaticano, perto da forma triunfal, como é venerado por todo o mundo.
  • São Papa Gregório Magno, em sua carta ao Bispo de Alexandria [9], nega que ele seja da única Sé de Pedro. Gregório coloca Antioquia, Alexandria e Roma em pé de igualdade, considerando as três procedentes de São Pedro, e chega até a dizer que elas são uma. Mesmo citando as missões do Apóstolo, nega que apenas o Papa tenha essas prerrogativas perante as outras duas Sés.

A interpretação do Papa Gregório é especialmente interessante por demonstrar como o Bispo de Roma enxergava a Igreja de Pedro, não sendo ele o único herdeiro da própria, contrariando o salto lógico da Pastor Aeternus, que pressupõe a única sucessão de Roma, desconsiderando até que em questão de autoridade puramente de Pedro, a Igreja Antioquena seria superior à Igreja Romana, tendo em vista que no pensamento antigo, o honorário é dado primeiro às pessoas e instituições das mais velhas para as mais novas. E conforme descrito por São João Crisóstomo e considerado pelo testemunho bíblico, a Igreja Antioquena é mais velha que a Igreja Romana. Enquanto Roma era uma cidade pagã, e justamente por isso obteve o martírio de Paulo, Pedro e Inácio; Antioquia já enviava missões pelo Império e escrevia pontos fundamentais da Teologia, como a diferenciação entre cristãos e judeus (Atos 11:26).

  • Respondendo à pergunta: quem eram aqueles que os Santos Apóstolos enviaram e ordenaram, a Constituição Apostólica (século III) responde: De Antioquia, Evódio, ordenado por Pedro; e Inácio por Paulo. De Alexandria, Annianus foi o primeiro, ordenado por Marcos, o Evangelista; o segundo, Avilius, foi por Lucas, que também era Evangelista. Da Igreja de Roma, Linus, filho de Cláudia, foi o primeiroordenado por Paulo; 2 Timóteo 4:21 e Clemente, depois da morte de Linus, ordenado por Pedro.” [10]

Opa, parece que temos algo interessante aqui. Diferentemente de Antioquia, o início da Sé de Roma foi através de Paulo, que ordenou o primeiro bispo ali, portanto, o primeiro Papa; Pedro ordenou o segundo. Antioquia, por sua vez, teve o começo em Pedro, que ordenou o primeiro Patriarca. Se o argumento aqui é de que ordenando o segundo Papa, conforme afirma o trecho sobre a morte de Linus, então Roma continua sendo Petrina; então Antioquia também é Paulina, conforme descrito na segunda ordenação da cidade, por Paulo. Portanto, Antioquia não só é plenamente Petrina, como Paulina, seguindo os condicionantes de honra que São Irineu de Lyon dá à Roma. Então, Antioquia receberia a mesma honra descrita por São Irineu em Contra as Heresias, livro 3, capítulo 3 e 2?

  • Novamente, o Papa Gregório Magno diz para o Bispo de Antioquia: “Nós temos o mesmo mestre em comum, o Príncipe dos Apóstolos, nenhum de nós deveria clamar ser o sucessor do Príncipe dos Apóstolos exclusivamente [no sentido de clamar para si a única e exclusiva Sucessão de Pedro].” [11]
  • Extra: Quando o Papa de Alexandria refuta os monofisistas, Gregório Magno diz a ele que a voz de São Marcos foi ouvida na Cadeira de Pedro, falando claramente que Alexandria possui a Sé de Pedro.

Fazer de Roma a única Sé Petrina, retirando de outras Igrejas as mesmas prerrogativas que Roma poderia arrogar para si, por algum tempo foi tão desesperador ao ponto dos romanos falsificarem documentos para isso. A questão aqui é que, tanto a argumentação medieval pós-cisma, quanto a definição “infalível” do Concílio Vaticano I, pressupõe que apenas Roma sucede São Pedro, e prova disso foi a ansiedade latina em simplesmente inventar que Antioquia não era Petrina, baseando sua argumentação em cartas deliberadamente falsificadas.

O Cardeal alemão Nicolau de Cusa (Nicolaus Chrypffs), uma grande personalidade ocidental da Idade Média, reconhecido pela sua argumentação e inteligência e sendo confiado pelo Papa para argumentar contra os ortodoxos no Concílio de Florença, utilizou a epístola espúria do Papa Marcellus I à Igreja de Antioquia (Marcelli Papæ ad episcopos anthiochenæ provinciæ. Patrologia Latina, vol. 7, p. 1093) em sua argumentação em favor do Papado [12], a qual [supostamente] retirava a Sucessão Petrina da própria, “curiosamente” passando-a para Roma e negando qualquer privilégio que Antioquia pudesse reivindicar por sua fundação Petrina, sendo uma condição única de Roma.

Nicolau ao menos reconhece que Antioquia foi fundada por Pedro, dizendo: “não há dúvidas de que Antioquia foi fundada por Pedro, mas não possui Primazia em virtude disso, uma vez que Antioquia se difere de Roma” [13]. Em seguida, Cusanus cita o texto falso. A suposta carta de Marcellus invoca o título de “cabeça das Igrejas” para a cidade imperial, além de dizer que apesar da Igreja de Pedro ter se iniciado em Antioquia, a ordem de Deus foi para que essa Igreja fosse transferida para Roma. O professor Paul E. Sigmund, publicando a tradução do “De concordantia Catholica” pela Universidade de Cambridge, reconhece que a carta citada por Nicolau é espúria [14]. Em outro momento, Nicolau cita a carta III de Anacletus, a qual já foi provada ser falsa, e ele próprio desconfiava que era o caso, mas a cita mesmo assim [15]. Sigmund também chama a obra de “o trabalho mais importante do século 15 sobre política”. Um livro tão renomado usando falsificações é realmente um problema, haja visto a influência que o próprio possui. E digo “falsificações” no plural pois, em uma única página, Nicolau teve a proeza de usar três falsificações justamente nas três referências que elencou (ver Nicholas of Cusa: The Catholic Concordance, tr. por Paul Sigmund, p. 94). As falsificações romanas eram uma epidemia na Idade Média, passando de “pai para filho”. Não falo isso em vão, seguindo Nicolau [16], o Cardeal Roberto Belarmino (1542–1621) fez uso da mesma carta de Marcellus para contrapor a fundação Petrina de Antioquia, em “De Romano Pontifice” [17]. Belarmino parece fundamentar a ideia de que Roma possui algum privilégio por ser onde São Pedro morreu, ou fundamenta que Roma recebe a única fundação Petrina por ter recebido Pedro no final de sua vida, tendo [provavelmente] a carta espúria de Marcellus em mente. Ele cita a morte de Roma por diversas vezes, e dedica 3 capítulos do livro 2 ao assunto, ignorando totalmente que a Sucessão se dá unicamente por fundação ou autorização, não por morte ou permanência no bispado.

Antes de citar a epístola referida, Roberto também usa a suposta carta III de Anacletus como referência para o título à Roma de “cabeça das Igrejas”, a qual também é falsa [18].

Coincidentemente, uma das poucas provas de que Roma recebeu alguma autoridade por ser onde Pedro morreu era uma carta falsa.

Conhecidos católicos, piedosos e humildes, já argumentaram que ao Pedro morrer, a sua função de Bispo Universal torna-se autoridade do Bispo Romano, pois a Cadeira dele fica vazia. Mas, na verdade, isso não pode ser comprovado na Igreja Primitiva. O lugar onde Pedro morreu não faz a menor diferença, e sua função de “Bispo Universal” (seja lá o que isso signifique) jamais foi interpretada como sendo de Roma, mas o título foi condenado por São Papa Gregório Magno, e essa tal condição nunca foi descrita pelos Padres Primitivos; é, com todo respeito, uma invenção para justificar como Roma recebe tantas prerrogativas de Pedro, mesmo não sendo a única Sé Petrina. No máximo, Roma foi vista como local de peregrinação por ser onde os túmulos dos dois Santos Apóstolos estavam; nada mais.

Resumidamente, nos poucos episódios onde os latinos responderam sobre a Sucessão Petrina de Alexandria e Antioquia (especificamente a última), usaram documentos falsos e condições que sequer fazem sentido [19]. É de se esperar que Roma ignorasse suas irmãs de fundação, arrogando para si títulos e funções exclusivos. Muito menos me surpreende que para comprovar tais honorários, os latinos tenham que tornar Roma “mais Petrina”, citando a permanência de Pedro na cidade imperial e que Alexandria foi fundada “apenas” pelo aluno de São Pedro, não por ele em si, sendo a última afirmação contrária ao ensino do Papa Gregório Magno.

2 — São Pedro e a Igreja Ortodoxa

Também conhecido por ser a boca e o líder dos apóstolos, São Pedro foi uma das pessoas mais importantes da história. A Ortodoxia reconhece a Primazia de Pedro, e não obstante, reconhece a Primazia de Roma. Contudo, Primazia e Supremacia são conceitos absolutamente distintos.

Adiando um pouco essa discussão, a Igreja Ortodoxa, seguindo a Tradição Primitiva, chama São Pedro de corypheu, um antigo título usado para o líder de um coral, denotando claramente a função de liderança do Apóstolo. Assim como Roma, Pedro é o Primus Inter Pares (Primeiro Entre Iguais), e recebe honra a partir dessa condição. Entretanto, esse honorário não deve ser extrapolado, chegando ao ponto de considerá-lo infalível em matéria de Fé, ou superior ao restante dos Apóstolos. A condição citada deve ser entendida como honra, não como função jurídica. Isso significa que a opinião de Pedro, tal como a opinião de Roma nos Concílios Ecumênicos, tinha grande validade e consideração pela ancianidade.

Estamos lidando com sociedades que honram os mais velhos, sempre buscando quem tem mais experiência. Com isso, Pedro torna-se líder dos Apóstolos por ter sido o primeiro a confessar a Verdade do Senhor (o mais velho na Fé), mas não o único.

Pedro não é o único a receber as chaves do Céu, muito menos o único a liderar a Igreja, e menos ainda, não é infalível e suas opiniões não estão acima da Fé proclamada igualmente pelos seus irmãos.

Todas as missões que ele recebe, o restante dos seus irmãos recebe. Essa condição de Pedro justifica o título de “Vigário/Boca dos Apóstolos”.

O presente parágrafo explicará a função de São Pedro na Igreja, tal como as polêmicas acerca dele. Abordaremos, portanto:

  • A rocha é Pedro ou a Fé de Pedro?
  • A função universal de Pedro
  • Apascentar as ovelhas é uma mensagem para um único Apóstolo?

3 — A Rocha é Pedro ou a Fé de Pedro?

Uma das maiores controvérsias bíblicas é referente a Mateus 16:19, onde Cristo fundou sua Igreja sob uma pedra. A polêmica aqui é: a pedra é o próprio Pedro ou a confissão de Pedro?

Seguindo a opinião do teólogo, historiador e sacerdote ortodoxo (subdiácono e posteriormente protopresbítero da Igreja Russa) John Meyendorff, a Igreja Primitiva permite as duas interpretações [20]. O ex-padre católico, revertido à Ortodoxia, Wladimir Guettée, que dedicou diversos trechos de seu livro “The Papacy: Its Historic Origin and Primitive Relations with the Eastern Church” contra a interpretação de que Pedro era a pedra, ainda dá indicativos nessa mesma obra de que os cristãos antigos admitiam as duas visões.

Seguindo os dois sacerdotes, que podem falar da Ortodoxia mais do que eu, reafirmo a posição deles: Pedro é a pedra, tal como sua confissão.

Durante algum tempo, considerei esse um debate realmente válido e necessário. Contudo, no amadurecimento da Fé, percebo como essa discussão é simplesmente desnecessária. Normalmente, há uma (falsa) dicotomia, onde os romanos adotam a interpretação de que Pedro é a pedra; enquanto os ortodoxos e protestantes adotam a outra interpretação, de que a pedra é a Fé proclamada por Pedro.

Ora, se a pedra for o Apóstolo, conforme descrito pelos santos primitivos, no que o Papado se comprova? Como os romanos fazem o salto lógico de que a Igreja foi fundada em Pedro, logo, Infalibilidade Papal?

O que podemos discordar, contudo, é com as prerrogativas que Roma arroga para si a partir dessa fundação, tal como a construção da Igreja unicamente em Pedro, não nos outros Apóstolos igualmente, sendo essas duas opiniões errôneas e condenadas pela Igreja Primitiva. Vou mais longe, Roberto Belarmino afirmou que os Apóstolos receberam o poder de perdoar os pecados, mas não receberam as chaves do Céu, indicando que apenas Pedro recebeu plenamente a promessa de Cristo [21]. Contudo, sou obrigada a discordar da interpretação do Cardeal. Conforme explicitado por Meyendorff [22], a linguagem de “chaves do Céu” não pode significar outra coisa além de “perdoar os pecados”. A linguagem que Cristo usa é visivelmente hebraica, fazendo diversas referências com as lendas e pensamento judeu. Ao comparar a passagem de Mateus 18:18 com Mateus 16:19, Belarmino tenta argumentar que o restante do bando não recebe as mesmas prerrogativas que Pedro, sendo permitido a eles somente o ato de perdoar os pecados. Mas é justamente isso que Cristo prometeu a Pedro em Mateus 16:19. Todos os apóstolos recebem as chaves do Céu, isso é, o poder de perdoar os pecados, ligar e desligar, etc. Pedro é o primeiro a receber, por isso tem Primazia na Fé, mas primeiro não significa único, muito pelo contrário, indica que depois dele, há outros.

Voltando ao assunto da fundação: a Igreja é fundamentada em Pedro e na Fé de Pedro justamente por Pedro ter proclamado a confissão correta. Pedro se torna a rocha pela confissão, não o contrário. Pedro, assim como nós, só pode ser Santo se proclama a Fé Verdadeira; a Fé no Deus Vivo. Tal como Roma, Pedro depende da Fé, não o contrário.

Dessa forma, não podemos distinguir a Fé de Pedro do próprio Pedro, pois se Deus fundou sua Igreja no Apóstolo, foi pelo mérito de sua confissão. Relembro da frase de São João Crisóstomo: “tendo a Fé de Pedro, temos o próprio Pedro” [23].

Portanto, não vejo como esse debate seja tão relevante. Seguindo as palavras do bem-aventurado, Roma não pode proclamar a única procedência Petrina, pois todas as Igrejas foram fundadas na Fé do Apóstolo, e tendo a Fé de Pedro, temos Pedro!

Não obstante, Orígenes condena quem acredita que a Igreja foi fundada somente em Pedro:

“Se você acredita que Deus levantou toda a construção de sua Igreja apenas em Pedro, o que você dirá de João, o filho do Trovão? O que você dirá de cada um dos apóstolos? Você pode se aventurar a dizer que os portões do inferno não prevalecerão contra Pedro em particular, mas prevalecerão contra os outros? Não são as palavras, “as portas do inferno não prevalecerão contra ela”, dirigida a todos eles? Não foram essas palavras cumpridas em cada um dos Apóstolos?” [24]

Que Cristo fundou sua Igreja em Pedro não é discutível, mas somente em Pedro? Não é isso que a Igreja Primitiva parece apontar. São João Crisóstomo chama Pedro, João e Tiago de “primeiros na dignidade entre os Apóstolos, fundamentos da Igreja, os primeiros chamados e os príncipes dos Apóstolos” [25].

4 — A função Universal de Pedro

Sendo ele o Príncipe dos Apóstolos, tudo o que Pedro recebe, o restante de seus irmãos também recebe. Aquilo que ele tem Primazia, ou seja, é o primeiro a reter, o restante dos Apóstolos também retém posteriormente. Assim foi com a fundação da Igreja. Pedro foi o primeiro a receber as chaves dos Céus (Mt. 16:19), contudo, não foi o único; posteriormente, o restante dos Apóstolos receberam as mesmíssimas chaves (Mt. 18:18), diferenciando Pedro apenas pelo tempo, não pela função.

Ora, todos receberam funções iguais, mas Pedro recebe as funções primeiro, portanto não trata-se de uma diferença de cargos, e sim uma distinção meramente temporal.

A Primazia tanto referida pelos ortodoxos vem de “primaz”, que por sua vez, vem do latim “primatia”. Daí nasce a palavra “primata”, por exemplo. Primaz significa, literalmente, “o primeiro”. A Primazia de Pedro é tão referida justamente por contrapor a Supremacia. Ser primaz de algo significa ser o primeiro de outros, e o fato de Pedro ser primata nos indica uma condição especial apenas no âmbito do tempo, mas não do cargo.

Pedro é primaz no quê? Ora, se o indicativo aqui é em ser o primeiro, então ele é o primeiro a receber os cargos; jamais o único.

São Paciano ensina: “Olhe a primeira cabeça desse mandamento [citando a fundação da Igrejas em Mateus]. De acordo com a relação do próprio Mateus, o Senhor falou um pouco antes a Pedro; (Ele falou a um para que desse um Ele pudesse lançar o fundamento da unidade). Em seguida, entregou o mesmo ensinamento em comum a todos” [26].

Com “função universal”, indico que São Pedro tinha suas prerrogativas compartilhadas com todos os apóstolos, e tudo o que São Pedro recebe, os seus irmãos também receberam. Contudo, conforme já explicitado na Primazia temporal de São Pedro, ele retinha primeiro. Não obstante, todos os bispos são sucessores de Pedro, desde de Roma até a Coreia, e é sobre esse último ponto que trarei agora.

Santo Agostinho indica claramente que São Pedro representava a Igreja ao todo ao receber as chaves do Céu, e inclusive condena quem acredita que as palavras de Mateus 16:19 são apenas para ele:

“Um homem ímpio representa todo o corpo do ímpio; da mesma forma que Pedro, representa todo o corpo do bom, sim, o corpo da Igreja, mas com respeito ao bom. Pois se no caso de Pedro não houvesse nenhum símbolo sacramental da Igreja, o Senhor não teria dito a ele: Eu te darei as chaves do reino dos céus: tudo o que desligares na terra será desligado no céu; e tudo o que ligares na terra será ligado no céu (Mateus 16:19). Se isso foi dito apenas para Pedro, não dá base para a ação da Igreja. Mas se for esse o caso também na Igreja, que o que está ligado na terra está ligado no céu, e o que está desligado na terra está desligado no céu, — para quando a Igreja excomunga, a pessoa excomungada está ligada no céu; quando alguém é reconciliado pela Igreja, a pessoa assim reconciliada é solta no Céu: — se tal, então, é o caso na Igreja, Pedro, ao receber as chaves, representou a Santa Igreja. Se, então, na pessoa de Pedro foram representados os bons na Igreja, e na pessoa de Judas foram representados os maus da Igreja, então a estes se disse: “Mas a mim nem sempre tereis”. Mas o que significa” nem sempre”; e o que significa o “sempre”? Se você é bom, se pertence ao corpo representado por Pedro, você tem Cristo agora e no futuro: ora pela fé, por sinal, pelo sacramento do batismo, pelo pão e pelo vinho do altar… você tem Cristo agora, mas o terá para sempre; pois, quando você for embora, chegará Aquele que disse ao ladrão: “Hoje você estará comigo no paraíso” (Lucas 23:43). Mas se você vive perversamente, você pode parecer ter Cristo agora, porque você entrou na Igreja, se firma com o sinal de Cristo, é batizado com o batismo de Cristo, se mescla com os membros de Cristo e se aproxima do Seu altar: agora você tem Cristo, mas vivendo mal, você não O terá para sempre.” [27]

São Pascário Radberto ensina o mesmo: “No entanto, Pedro expressou tais coisas com o coração, de modo que sua confissão seja a de todos os apóstolos. E assim, como todos são questionados uma vez, em Pedro está a única resposta de todos na qual a Igreja foi fundada” [28].

São Teodoro Estudita (759 d.C) escreve [29]: “Mas aqui é uma questão de decisões divinas e celestiais, e essas são reservadas apenas àquele a quem Deus disse “tudo o que ligares na Terra, será ligado no Céu”. E quem são os homens a quem esta ordem foi dada? Aos apóstolos e seus sucessores. E quem são os sucessores? Aquele que ocupa o trono de Roma é o primeiro; aquele que senta em Constantinopla é o segundo; depois deles, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. Essa é a autoridade Pentárquica na Igreja. É a eles que toda a decisão dogmática pertence. O imperador e a autoridade secular têm o dever de ajudá-los a confirmar o que decidiram.”

Esse trecho de São Teodoro é especialmente interessante. Em primeira instância, o Santo usa uma linguagem no singular, e depois remonta ao plural. São Teodoro não poderia estar traçando outro pensamento senão que São Pedro representava a Igreja ao todo, não apenas sua única Cátedra. Conforme será observado nos trechos a seguir, o uso de Pedro como sintetizador de toda a Igreja é especialmente comum em alguns pais. A Igreja não se resume a ele e ao seu principado, mas todos os bispos podem ser resumidos nele por proclamarem a Fé dele, tornando-se descendentes de Pedro. Não são apenas Antioquia e Alexandria que possuem a Cátedra de Pedro, muito menos apenas Roma; mas toda a Igreja que procede de Pedro como professor universal, não apenas de Roma. Ele é o mestre das três cidades por excelência, mas mestre universal por Fé, pois, “tendo a Fé de Pedro, temos o próprio Pedro”. Roma não pode arrogar para si a única fundação Petrina por excelência, pois já foi demonstrado que suas irmãs Alexandria e Antioquia possuem a mesma excelência; muito menos por reivindicar a única sucessão na confissão, pois nesse caso, o mundo inteiro procede de Pedro e tem ele como mestre comum. Todas as Cátedras possuem de Pedro pois ele necessariamente representou toda a Igreja ao receber as chaves do Céu, conforme descrito por Santo Agostinho, e as chaves só foram conquistadas por sua confissão excelente, sendo a fé excelente de toda a Igreja, em todas as Cátedras do mundo, conforme descrito por São Teodoro.

O segundo ponto interessante na colocação do monge Estudita é sua citação sobre a Pentarquia. A autoridade, de acordo com o Santo, é composta por cinco Igrejas, as quais são responsáveis pela decisão dogmática igualmente. Diferentemente da decisão errônea do Concílio do Vaticano I, os dogmas são decididos pelas cinco Sés, não podendo ser uma estrutura baseada em Roma, mas é baseada na Pentarquia.

São Gregório Nazirenzo ensina que “através de Pedro, os bispos receberam as chaves da honra celestial” [30] (aqui São Gregório estava falando de Igreja Universal, não apenas de Roma. Devemos entender o versículo como os bispos do mundo, não a Sucessão presente na cidade imperial).

Ao se referir aos bispos do mundo todo em Ecclesiastica Hierarchia, Pseudo-Dionísio frequentemente cita São Pedro como elemento sintetizador e representante universal.

Em outros casos, São Pedro é o único citado pelo nome, precedendo a frase “outros bispos”, “outros hierarcas” ou alguma variação dessa, denotando seu caráter sintetizador e universal, a citar, novamente, exemplos como São Dionísio: “E para aquele que foi iluminado pela revelação sagrada do Santo Pai, é dito nas Escrituras, ‘tudo o que ligares na terra será ligado no céu e tudo o que desligares na terra será desligado no céu’. Assim, o próprio [Pedro] e todos os hierarcascom ele tiveram o julgamento do Pai revelado a eles, e, sendo eles próprios homens que fornecem revelação e explicação, têm a tarefa de admitir os amigos de Deus e de afastar os ímpios.” [31]

Santo Agostinho explica no Sermão 18: “Pedro recebeu este nome do Senhor para significar a Igreja; pois a Rocha é Cristo, e Pedro é o povo cristão. A rocha é a palavra principal; é por isso que Pedro é derivado da rocha, e não a rocha de Pedro; precisamente porque a palavra Cristo não vem de cristão, mas cristão de Cristo.

‘Tu és, portanto, Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. Eu vou te construir sobre mim mesmo — eu não serei construído sobre você.’ “

Fica claro que ele não detém nada para si, mas repassa para o mundo através dos seus irmãos apóstolos.

Após estabelecer isso, será que há como comprovar que a função de apascentar as ovelhas, descrita em João 21:15–19, é aplicável somente a Pedro?

5 — Apascentar as ovelhas é uma mensagem para um único Apóstolo?

A resposta curta é óbvia: não.

Os problemas aqui são dois: 1) diferenciar “ovelhas” de “cordeiros”, 2) aplicar a condição de cuidar da Igreja apenas a Pedro.

O verdadeiro problema está no ponto 1, pois é a partir dele que a narrativa de permitir que Pedro e seus sucessores (apenas os romanos, como os latinos arrogam para si) tenham Supremacia sobre a Igreja. Os romanos argumentam que “ovelha” significaria os fiéis, enquanto “cordeiro” significaria os clérigos. Contudo, isso não parece fazer muito sentido. Nenhum pai primitivo argumenta dessa forma, e nem há uma distinção real entre ovelhas e cordeiros no Novo Testamento, muito menos uma diferenciação tão clara que dê a uma palavra o sentido de leigo e a outra o significado de clérigo (ver Guettée, p. 14–15).

O rebanho é dado a todos os apóstolos e isso é muito claro, podendo ser observado nas próprias palavras de São Pedro em 1 Pedro 5:2, e em Atos 20:28.

Para essa passagem significar uma Supremacia de Roma, primeiro os latinos teriam que provar a única procedência Petrina de Roma, o que falharam miseravelmente em fazer no passado. Até tentaram, mas feriram os ensinamentos de São João Crisóstomo e até de um Papa, São Leão. Não obstante, creio que seja de suma importância demonstrar que a universalidade de Pedro não foi ensinada pelos pais antigos, e, portanto, apenas Roma teria direito às prerrogativas referidas, incluindo a suposta supremacia descrita em João 21:15–19.

O que eu quero dizer aqui não é contraditório ao explicitado sobre São Pedro ser pastor universal. Há uma diferença entre ser o mestre comum de todas as Sés Apostólicas, e ser infalível, ter prerrogativas maiores que as do restante dos apóstolos ou algo do gênero. Como poderíamos falar que não somos procedentes de São João, se usamos sua fé e seu evangelho, incluindo agradecemos o cuidado que ele teve com a Santíssima Mãe de Deus? Pedro é mestre universal, assim como os antigos padres consideravam todos os apóstolos. Isso só demonstra como Pedro não é superior aos seus irmãos como os romanos insistem.

Talvez seja interessante elencar algumas coisas sobre São Pedro, haja visto que ele é a base de todas as argumentações romanas.

Se Pedro não era infalível nem superior ao restante dos Apóstolos, quem dirá Roma. São Jerônimo nega que algum costume de Roma deve ser observado caso seja diferente do restante do mundo:

“Não é que haja uma Igreja em Roma e outra no restante do mundo. A Gália e a Grã-Bretanha, a África e a Pérsia, a Índia e o Oriente adoram um só Cristo e observam uma única regra de verdade. Se a autoridade for solicitada, o mundo é maior que uma cidade… Onde quer que os bispos estejam, seja em Roma, ou Eugebium, ou Constantinopla, ou Rêno, a dignidade é a mesma, e o sacerdócio é o mesmo. Todos, igualmente, são sucessores dos Apóstolos. Por que você apresenta um costume que existe em uma cidade apenas? Por que você se opõe às regras da Igreja por uma exceção mesquinha?” [32].

Se nem São Pedro pode decidir as coisas por si só, quem é o Papa para fazê-lo? Não é o Bispo de Roma o único e máximo imitador de São Pedro? Suponha-se ao menos que siga as regras aplicadas ao próprio Pedro. São João Crisóstomo comenta: “Veja, Pedro faz as coisas com consentimento geral, e não decide nada a partir de sua própria autoridade e poder.” [33]

São Crisóstomo não poderia estar mais certo. Pedro, diferentemente do que o Papa arroga para si, não demonstra nenhuma Infalibilidade; mas pelo contrário, segue seus irmãos que, em comum acordo, decidem tudo na Igreja.

A própria Bíblia nega que Pedro tenha a palavra final, tal como Infalibilidade. Vejamos o que o primeiro Concílio do Cristianismo nos mostra:

Em Jerusalém, 50 depois de Cristo, acontecia o Concílio de Jerusalém, o qual discutia a relação da Nova Aliança com a Velha Aliança, incluindo o costume da circuncisão. O interessante desse Concílio é que, justamente onde Pedro teria que provar ter todas as prerrogativas elencadas por Roma, é onde ele prova justamente o contrário.

A palavra de Pedro sobre o assunto não é definitiva, mas muito pelo contrário, a palavra final é a de São Tiago, o irmão de Cristo. Se Jerusalém, a sede que São Tiago governou, fosse maléfica como a atual Roma é, com certeza já teria se aproveitado dessa passagem. Contudo, Jerusalém não se desviou como Roma, mesmo sendo o local mais santo da Terra, com milhares de destinos de peregrinação, incluindo o Verbo de Deus.

Pedro fala como um membro comum, apresentando seus argumentos e opiniões (Atos 11), contudo, sua palavra não é de forma alguma definitiva. Há mais quatro capítulos de discussão após a fala de Pedro, que teria de ser infalível e definitiva. E conforme já citado, quem dá a cartada final é São Tiago (Atos 15:13), inclusive é ele quem preside o Concílio. A decisão do Bispo de Jerusalém é baseada na fé de seus irmãos; o que torna algo verdadeiro é o consenso, não se Pedro dá a última palavra ou não.

6 — Os privilégios e limites da Igreja Romana no período primitivo

Após abordar massivamente a função do Apóstolo Pedro, creio que a explicação sobre Roma na Igreja Primitiva seja de igual valia.

Apesar de ter tocado na fundamentação do Papado, que não pode se comprovar pelos motivos já citados, proponho elucidar algumas lacunas sobre os tais privilégios romanos, tal como os limites desses honorários.

A Igreja Romana possuía uma grandíssima influência no período antigo, e uma das causas de tal era por ser capital do Império Romano. É estritamente por esse motivo que o Concílio I de Constantinopla declara: “O Bispo de Constantinopla, no entanto, deve ter a prerrogativa de honra, após o Bispo de Roma porque Constantinopla é Nova Roma”.

Roma, tal como Constantinopla, recebem prerrogativa de honra unicamente por serem a antiga capital do Império e a nova, respectivamente. Alexandria e Antioquia, as duas das três Sés Petrinas, ficam atrás de Constantinopla, que não foi fundada (por excelência) por São Pedro, mas por São André. Aqui, a prerrogativa de honra segue estritamente o andamento do Império, não Pedro e suas honras.

Mas, afinal, o que é prerrogativa de honra?

Conforme descrito no cânone 9 do Concílio da Calcedônia, a tal prerrogativa trata-se de direito de intervir caso seja apelado, tal como a preeminência (ser o primeiro) a qual os bispos devem recorrer (“E se um bispo ou clérigo tiver alguma divergência com o metropolita da província, que recorra ao Exarca da Diocese, ou ao trono da Cidade Imperial de Constantinopla, e que ali seja julgado”). O interessante do cânone 9 é como Constantinopla é citada para resolver impasses, não Roma, e isso tem um motivo: o cânone 28 do mesmo Concílio estabelece que Roma e Constantinopla possuem prerrogativas compartilhadas. E apesar da objeção do Papa em compartilhar sua honra com Constantinopla, o cânone continuou em vigor, o que por si só já demonstra que esses Santos Pais não enxergavam Roma como definitiva, muito menos as vontades do Papa como supremas, pois mesmo com seu protesto, o cânone passou. Posteriormente, Roma aceitou a regra, conforme postulado pelos Concílios Ecumênicos posteriores (Cânone 36 do Concílio de Trullo [692 d.C.]).

O cânone 36 fala de Constantinopla e Roma compartilharem a grandeza em debates eclesiásticos. Grandeza, não Infalibilidade. Grandeza compartilhada com Constantinopla, não Infalibilidade sozinha.

Essa regra de Trullo dá a mesma consideração ao restante das Sés, essas ficando atrás de Roma e Constantinopla, mas ainda sendo consideradas em debates ecumênicos.

Em um período onde controvérsias entre bispos tinham de ser resolvidas em Constantinopla, chegando ao ponto de convocar um Concílio Ecumênico, não é de espantar que uma hierarquia honorária fosse estabelecida. Roma e Constantinopla são grandes em debates teológicos, mas não são únicas ou infalíveis. Não há como comprovar a partir desses cânones que estabelecem uma hierarquia honorária, e não jurídica (não há punição para quem não adere às decisões de Roma simplesmente por ser Roma), que Roma tinha alguma jurisdição universal ou infalível, mas muito pelo contrário, conforme veremos nas citações do próximo tópico, a jurisdição universal, tal como Roma arroga para si, foi condenada pelos Concílios Ecumênicos que o próprio Papa tem como régua de fé.

Apesar de Roma e Constantinopla terem preeminência em discussões eclesiásticas por sua excelência, ainda não podem extrapolar o que foi estabelecido nos outros cânones, ou melhor dizendo, não podem ferir os direitos descritos pelos Concílios anteriores e posteriores. Ao tratar de direitos a serem mantidos, entende-se que aquela província é independente, sendo permitido que as outras Sés (principalmente Constantinopla e Roma unicamente pela honra) recomendem algo caso forem apeladas, mas respeitando os limites jurisdicionais, e é justamente no limite jurisdicional que mora o limite de atuação de Roma, Constantinopla ou qualquer outra Sé. E, apesar da preferência, ou pelo menos da busca, primeiro, pela opinião das duas Igrejas que compartilham a honra entre si, a apelação não foi algo exclusivo das duas.

Na controvérsia de Eutiques, por exemplo, após ele ser condenado por Constantinopla, ele apelou não à Roma sozinha, mas à Roma, Alexandria e Jerusalém [34].

A apelação serve justamente aos que se sentem condenados injustamente, mesmo que não necessariamente tenham sido condenados com inverdade. Falando em termos mais atuais, a apelação às outras Igrejas é como recorrer ao STF depois de uma decisão do STJ, por exemplo. Quando há uma condenação na sua província, não há outro jeito de resolver (ser absolvido) que não buscando outra província para ajuda. Em alguns casos, a apelação chegava à convocação de um Concílio Ecumênico, sendo esse, diferentemente do ensinado por Roma, a última instância universal, e não o Papa. Se um Concílio te condenou, não há realmente nada a ser feito, pois todas as instâncias possíveis foram passadas.

A honra de Roma tem um limite, ela não supera os Concílios Ecumênicos, pois um único bispo não pode ser maior que o mundo inteiro.

Os limites de Roma são os limites de sua província, tal como ocorre com o restante das Igrejas. O direito de Roma é ser apelada por constituir uma Igreja independente (autocéfala), tal como ocorre com o restante das Igrejas, apesar de Roma receber uma preferência maior por sua honra, que não transfere em uma pena jurídica aos que não seguem suas recomendações para fora das províncias; essa condenação só é feita em um Concílio Ecumênico, não por ser uma posição de Roma, mas por ser uma condenação de toda a Igreja. Prova disso é que, apesar do Papa São Leão estar certo em seu Tomo contra os monofisistas, sua decisão papal não foi suficiente. Os argumentos de São Leão foram levados ao Concílio da Calcedônia e aceitos como posição oficial a partir do Concílio, não a partir da simples decisão do Papa. O Bispo de Roma está sempre abaixo do Concílio Ecumênico. O próprio Papa Leão expressa que seu Tomo só estaria correto a partir do julgamento de um Sínodo Ecumênico (e não o Concílio correto a partir do julgamento do Papa): “Pois na carta que emitimos da Sé Apostólica, e que foi ratificada pelo parecer favorável de todo o Santo Sínodo, sabemos que muitas testemunhas divinamente autorizadas estão reunidas.” [35]

O Santo Papa fala explicitamente que sua posição dogmática foi ratificada pelo Concílio; não o contrário.

Se nem a decisão de Pedro foi suficiente, quem dirá a do Papa.

Ainda sobre a jurisdição universal, o cânone 6 do Primeiro Concílio Ecumênico nega e condena que os bispos a pratiquem:

“Serão mantidos os antigos costumes do Egito, Líbia e Pentapolis, segundo os quais o bispo de Alexandria tem autoridade [jurisdição] sobre todos esses lugares, já que um costume semelhante existe em relação ao bispo de Roma. Da mesma forma, em Antioquia e nas outras províncias as prerrogativas das igrejas devem ser preservadas. Em geral o seguinte princípio é evidente: se alguém é constituído bispo sem o consentimento do metropolita, este grande sínodo determina que tal pessoa não será bispo. Se, porém, dois ou três por motivo de rivalidade pessoal discordarem do voto comum de todos, contanto que seja razoável e de acordo com o cânon da igreja, prevalecerá o voto da maioria.”

O Cânone nega que o Bispo de Roma tenha jurisdição sobre outras Igrejas, mas cita apenas sua própria província como sua jurisdição, e ainda pede a observância das prerrogativas de cada província, isso é, sua independência.

O Segundo Concílio Ecumênico, no Cânone 2, é ainda mais explícito: Que os bispos não estendam o seu poder sobre as igrejas fora dos limites de sua diocese, nem tragam confusão às igrejas; mas que o Bispo de Alexandria, de acordo com os cânones, administre somente os assuntos do Egito; e que os bispos do Oriente administrem somente o Oriente, sendo preservados os privilégios da Igreja de Antioquia, que são mencionados nos cânones de Nicéia; e que os bispos da diocese da Ásia administrem somente os assuntos da Ásia; e que os bispos pônticos administrem somente os assuntos de Ponto; e que os bispos trácios administrem somente os assuntos de Trácia. E que os bispos não ultrapassem os limites de suas dioceses para a ordenação ou quaisquer outras ministrações eclesiásticas, a menos que sejam convidados. E, observando o referido cânon relativo às dioceses, é evidente que o sínodo de cada província administrará os assuntos daquela província em particular, como foi decretado em Nicéia. E as Igrejas de Deus nas nações pagãs devem ser governadas de acordo com o costume que tem prevalecido desde os tempos dos Padres.”

Nenhuma exceção é feita à Roma. Roma deve governar apenas Roma, como está implícito aqui e mais explícito no Primeiro Concílio. Contudo, a condenação à jurisdição universal é mais explícita no trecho acima. Roma não pode administrar todo o mundo como o Vaticano I clama.

7 — Erros comuns dos romanos

Após a explicação sobre os limites do Papa e seus privilégios, proponho responder alguns erros comuns dos romanos no presente capítulo. Para que o artigo não fique mais longo do que o previsto, falarei de apenas dois dos mitos apresentados, e, apesar de ser um número pequeno de “refutações” (por mais que eu não goste dessa palavra), creio que será de grande valia, principalmente no que tange às coisas que parecem muito simples, como é o caso do primeiro mito, mas que não são tão fáceis como parecem.

I. Roma Locuta Est, Causa Finita Est

Essa frase teria sido falada por Santo Agostinho. O problema é que essa declaração em si não existe, mas é um resumo malicioso do que Agostinho quis dizer.

O Santo não disse isso em sentido universal, mas de maneira regional.

Pelágio havia sido condenado nos Sínodo de Cartago e Mileve, ambos do Norte da África. Contudo, Pelágio morava em Roma e o foco de sua heresia era lá. Assim, após a condenação, os bispos africanos avisaram ao Papa Inocêncio I sobre a situação, justamente por ser algo a ser resolvido em sua província. O Papa ratificou as decisões dos Sínodos, condenando Pelágio, assim Santo Agostinho escreve ao herege: “Sobre esse assunto, dois Sínodos já enviaram cartas à Sé Apostólica, e dela a decisão veio. O assunto está resolvido (causa finita est).”

A decisão do Papa não seria suficiente, mas seu trabalho em conjunto dos bispos africanos, respeitando a decisão local, deu fim a Pelágio.

O padre católico romano Klaus Schatz escreve:

“Agostinho não permite nenhuma interpretação além de que o veredito de Roma, por si só, não é decisivo, mas que elimina as dúvidas depois de tudo o que precedeu. Isso ocorre porque não resta nenhuma outra autoridade eclesiástica que os pelagianos pudessem apelar, principalmente se tratando da autoridade que eles mais poderiam esperar apoio, mas que foi negado.” [36]

É interessante que justamente Santo Agostinho seja usado para provar uma Supremacia do Papa, quando ele demonstrou, ao longo de sua atuação, justamente o contrário. Em 418, Agostinho juntamente de seus irmãos, definiram no Concílio de Cartago, cânone 17, que a apelação à Roma estava vetada, sendo permitido apelar somente aos Sínodos africanos. O Concílio de 418 reconheceu como impossível a atuação do Papa fora de Roma (no sentido de impossibilidade física), privando qualquer um de receber comunhão caso apelasse à Roma.

Além disso, o Papa vigente havia feito manobras pelagianas, as quais foram consideradas improcedentes pelo Sínodo de 418. Roma depende da Fé para ser excelente e receber a honra de ser apelada; não o contrário.

Em 419, outro Sínodo de Cartago definia como proibido o uso de títulos como “Príncipe dos Bispos”, “Sumo Pontífice” ou “nomes do gênero”, sendo permitido apenas o uso de títulos como “Bispo da Primeira Sé”. Apesar de não falar especificamente de Roma, a referência é um tanto quanto óbvia. É sobre o Bispo Romano ou, no mínimo, sobre algum Patriarca (Patriarcado é a primeira Sé de uma província), mas a condenação também é feita ao bispo de Roma, pois nenhuma ressalva a ele é feita.

No mesmo Sínodo, o Cânone 120 condena a intromissão de bispos estrangeiros nos povos fora de sua Sé.

O Papa não tem direito de modificar a doutrina, pois o Cânone 134 estabelece a observância dos cânones de Nicéia nas decisões do Bispo de Roma. As decisões romanas devem estar de acordo com os cânones, não de acordo com sua única palavra.

Lembrando que Santo Agostinho estava presente em ambos os Concílios.

II. Sto. Irineu de Lião e a concordância com Roma

No livro Contra as Heresias, volume 3, capítulo 3 e parágrafo dois, São Irineu diz: “Visto que, no entanto, seria muito enfadonho, em um volume como este, contar as sucessões de todas as Igrejas, confundimos todos aqueles que, de qualquer maneira, seja por uma má auto-satisfação, por vanglória, ou por cegueira e opinião perversa, reúnam-se em reuniões não autorizadas; [fazemos isso, eu digo,] indicando que a tradição derivada dos apóstolos, da muito grande, muito antiga e universalmente conhecida Igreja fundada e organizada em Roma pelos dois apóstolos mais gloriosos, Pedro e Paulo; como também [apontando] a fé pregada aos homens, que chega ao nosso tempo por meio das sucessões dos bispos. Pois é uma questão de necessidade que cada Igreja concorde com esta Igreja, por conta de sua autoridade preeminente [potiorem principalitatem]”.

Não há um romano que não tenha usado essa frase pelo menos uma vez na vida. O grande problema aqui é que não há realmente nada contra a Ortodoxia nesse trecho. Roma deve ser respeitada por sua autoridade preeminente, ou seja, pela sua Primazia. Contudo, esse respeito não é cego. O próprio São Irineu discorda do Papa Vitor quanto a excomunhão das Igrejas da Ásia Menor pela data da Páscoa, e repreende o próprio severamente. São Irineu, conforme descrito por Eusébio de Cesaréia, foi o pacificador no assunto [37].

O Papa não teve poder total na decisão, mesmo excomungando os cidadãos, mas, muito pelo contrário, ele foi condenado por São Irineu e pelo restante dos bispos. A decisão papal não foi seguida e apenas no Concílio da Nicéia o veredito final, que culminou no extermínio da outra data da Páscoa, foi postulado, mesmo que o Papa já tivesse se pronunciado sobre o assunto.

Philip Schaff, por exemplo, considera que o Papa não excomungou os fiéis asiáticos, mas apenas cortou a comunhão [38]. Isso explicaria, ou melhor, seria contra a aclamação papista de que o Papa tinha direito de excomungar fora de sua província. De qualquer forma, a decisão do Papa foi condenada mesmo que São Irineu considerasse (corretamente) que a autoridade de Roma tinha grande valia.

Vale notar que a estrutura em latim do trecho pode significar tanto que os fiéis devem concordar com Roma, quanto que eles devem ir à Roma. Sobre esse tópico, recomendo a leitura das páginas 21 à 24 do livro “The Papacy: Its Historic Origin and Primitive Relations with the Eastern Church”. O padre Guettée também aborda o tema em outro livro chamado “O Papado Cismático”, contudo, esse é muito mais complicado de achar tradução para o inglês, sendo francês o idioma original. Os argumentos são praticamente os mesmos de um livro para o outro, portanto creio que seja mais proveitoso buscar a primeira obra para estudar sobre este assunto em específico.

Algumas provas esporádicas

O presente tópico são argumentos soltos que não sabia onde encaixar no artigo, mas os considero de suma importância para uma análise contrária ao Papado. Além do presente texto oferecer cânones dos Concílios Ecumênicos, frases dos Santos e outros documentos, principalmente sobre o fundamento do Papado — São Pedro — , também compartilho algumas provas da Igreja Primitiva contrárias ao Papismo.

São Firmiliano († 269) foi especialmente energético contra o Papa Stephan (creio que o nome em português seja traduzido por “Estevão”). Firmiliano comparou o Papa a Judas:

“Stephen não fez nada que merecesse gentileza e agradecimento. Pois nem pode Judas ser considerado digno por sua perfídia e traição com que ele tratou perversamente em relação ao Salvador”. [39]

Como era esperado, na discussão contra Firmiliano, o Papa reivindicou sua Sucessão Petrina, o que ele respondeu: “Estou justamente indignado com esta loucura tão aberta e manifesta de Estêvão, de que aquele que tanto se orgulha do lugar de seu episcopado e afirma que detém a sucessão de Pedro, sobre quem foram lançados os fundamentos da Igreja, deveria apresentar muitos outras rochas e estabelecer novos edifícios de muitas igrejas; sustentando que há batismo neles por sua autoridade… Nem ele entende que a verdade da Rocha Cristã é ofuscada, e em alguma medida, abolida, por ele quando assim trai e abandona a unidade.” [40]

Firmiliano explicitamente condena o uso da autoridade Petrina para se defender dos erros que o Papa comete, dizendo que, caso ele não esteja de acordo com a Fé, a rocha da Fé será abolida. Mais explicitamente ainda, São Firmiliano coloca a unidade como condicionante do Papa ter a Rocha Cristã, e não a Rocha Cristã pelas decisões do Papa.

O Santo, apesar de suas opiniões especialmente fortes sobre o Papa, foi cortado de comunhão unicamente pelo seu posicionamento teológico sobre o batismo. A Enciclopédia Católica, por exemplo, não dá qualquer indicativo de que Firmiliano foi cortado da comunhão por ofender o Papa ou ir contra sua autoridade Petrina [41].

O Papa São Gregório Magno condena o título de “bispo universal” veementemente. O Patriarca João (O Jejuador) de Constantinopla recebeu o nome de “Ecumênico” do Imperador, o qual foi massivamente atacado pelo Papa, mesmo após a morte de João. O Jejuador era uma homem extremamente piedoso, mas por conta da diferença idiomática entre Oriente e Ocidente, seu título foi traduzido por “Bispo Universal” no idioma latino. Os monges constantinopolitanos chegaram a oferecer o título de Ecumênico ao Bispo de Roma, e ele interpretou como “Universal”, recusando rapidamente [42]. O nome era meramente honorário, significando a autoridade de algum bispo sob a capital do Império. Contudo, São Gregório, apesar da confusão que não foi culpa sua, condenou o modo pelo qual os Papas atuais se chamam.

Gregório escreve:

“Agora, eu digo com confiança que todo aquele que se chama, ou deseja ser chamado, Sacerdote Universal, está em sua euforia, o precursor do Anticristo, porque ele orgulhosamente se coloca acima de todos os outros. Nem é por orgulho diferente que ele é levado ao erro; pois, assim como aquele perverso deseja aparecer como acima de todos os homens, então quem quer que seja este que cobiça ser chamado de único sacerdote, ele se exalta acima de todos os outros sacerdotes.” [43]

O que Belarmino fez que não fosse condenado pelo Papa Gregório, dizendo que apenas Pedro recebe a honra celestial em plenitude, colocando o Apóstolo de Deus acima do restante, e arrogando para sua Sé superioridade?

O que o Papa atual faz que já não esteja condenado pelo Papa anterior, que não concorda que um único sacerdote é superior ao outro, contrariando o ensino do Vaticano I, que arroga para o Papa a palavra final e única?

São Gregório faz mais diversas condenações, mas, para que não me estenda muito, termino aqui minha exposição sobre o Papado.


Notas e Referências

[1] Nilus Cabasilas. De causis dissentionum in ecclesia. Trecho traduzido por Donald Nicol em “Byzantine Request for a Ecumenical Council in Fourteenth Century”, p. 93.

[2] Concílio do Vaticano I. Pastor Aeternus, capítulo 4, n° 9.

[3] Ibid., a anátema aos que proclamam a Universalidade da Infalibilidade está na finalização do Concílio, onde é dito: “Portanto, se alguém, o que Deus nos livre, tiver a audácia de rejeitar esta nossa definição: seja anátema.”

[4] São João Crisóstomo. 2° Homília sobre o título dos Atos dos Apóstolos. Traduzido por Vladimir (Abbé) Guettée em “The Papacy: Its Historic Origin and Primitive Relations with the Eastern Church”, p. 164–165.

[5] Tertuliano. Prescrição Contra os Hereges, capítulo 32. Traduzido por Peter Holmes em “Ante-Nicene Fathers”, vol. 3.

[6] São João Crisóstomo. 2° Homília sobre o título dos Atos dos Apóstolos. Traduzido por Vladimir (Abbé) Guettée em “The Papacy: Its Historic Origin and Primitive Relations with the Eastern Church”, p. 165. // O trecho é do mesmo discurso que a referência 3, por isso a mesma citação.

[7] São João Crisóstomo. Elogios à São Inácio. Traduzido por Vladimir (Abbé) Guettée em “The Papacy: Its Historic Origin and Primitive Relations with the Eastern Church”, p. 165.

[8] Ibid., 165–166.

[9] São Gregório Magno, livro VII, carta 40 (ao Eulogius, Patriarca de Alexandria). Online em: https://www.newadvent.org/fathers/360207040.htm

[10] Constituição Apostólica, livro VII, seção 4.

[11] GUETTÉE, Vladimir. The Papacy: Its Historic Origin and Primitive Relations with the Eastern Church, p. 101. // A referência para o “extra” está na mesma página.

[12] Nicolau de Cusa. De concordantia Catholica. Traduzido por Paul Sigmund, p. 112.

[13] Ibid.

[14] Ibid., p. 112, nota 9.

[15] Ibid., p. 196.

[16] Mesmo sem citar Nicolau, a influência é óbvia. Falo aqui de pensamento igual, não de referência um do outro (apesar de duvidar muito que não houve uma inspiração de Belarmino, haja visto o uso das mesmas falsificações), que fique claro.

[17] Roberto Belarmino. De Controversiis, capítulo IV, p. 167. Mediatrix Press.

[18] Ibid. // Sobre a carta espúria de Anacletus, ver: TRAHERNE, Thomas. Roman forgeries, or, A true account of false records discovering the impostures and counterfeit antiquities of the Church of Rome, p. 66.; PIN, Louis Ellies Du. A New History of Ecclesiastical Writers, Vol. I & II, p. 176. Londres, 1693.; De concordantia Catholica. Traduzido por Paul Sigmund, p. 196. // Esses foram os trechos que me saltaram os olhos, mas com certeza há mais citações espúrias no livro de Belarmino, como há no livro do Nicolau.

[19] Não estou dizendo que essas falsificações foram responsabilidade de Nicolau ou Belarmino. Assim como Aquino usou obras espúrias em Contra Errores Graecorum e não teve culpa, creio que foi esse o caso de Roberto e Cusa. O caso de Nicolau nem faria sentido, pois ele mesmo reconhece que a carta poderia ser falsa (ver a referência 15 do presente artigo). Em especial, faço essa nota por ter uma certa admiração por Nicolau, que anos antes de Lorenzo Valla, recusou-se a aceitar a autenticidade da famosa [suposta] Doação de Constantino (ver GEANAKOPLOS, Deno. The Council of Florence (1438–1439) and the Problem of Union Between the Greek and Latin Churches, p. 331), mesmo que esse documento falso comprovasse seus pontos sobre o Papado, além de, novamente, ter suspeitado da falsidade da carta de Anacletus.

[20] MEYENDORFF, John. The Primacy of Peter, p. 65.

[21] Roberto Belarmino. De Controversiis, capítulos XVI e XVII . Mediatrix Press. // Aqui, os dois capítulos são referenciados por falarem explicitamente que o poder de ligar e desligar dado a Pedro, difere-se do poder dado ao restante dos Apóstolos. A parte XVI fala de quem recebe as chaves do Céu e o XVII da “verdadeira” interpretação desse termo.

[22] MEYENDORFF, John. The Primacy of Peter, p. 51.

[23] São João Crisóstomo. 2° Homília sobre o título dos Atos dos Apóstolos.

[24] Orígenes. Comentários sobre São Mateus.

[25] São João Crisóstomo. Upon the First Chapter of Galatians.

[26] São Paciano. The Extant Works of S. Pacian, Library of Fathers of the Holy Catholic Church 17 (1842) pp. 336–362. Letter 3: Against the treatise of the Novatians.

[27] Santo Agostinho. Tratados sobre o Evangelho de João, tratado 50, parágrafo 12. Online em: https://www.newadvent.org/fathers/1701050.htm

[28] Patrologia Latina, vol. 120. Exposição do Evangelho de Mateus, p. 0561A.

[29] São Teodoro Estudita, carta a Leo Sacelório. Patrologia Grega, vol. 99, p. 1417. Traduzido por Francis Dvornik em “Byzantium and Roman Primacy”, p. 101.

[30] Patrologia Grega, vol. 46, p. 312. (De Castigatione).

[31] COLM, Luibheid. Pseudo-Dionysius: The Complete Works, p. 256. Paulist Press, 1987.

[32] Hieronymus Epistle 146: To Evangelus. Traduzido por Wm. Henry Fremantle.

[33] São João Crisóstomo. Oitava homilia sobre o Atos dos Apóstolos.

[34] Nicene and Post-Nicene Fathers: Second Series, Vol. 13, p. 7. Leo, the Great.

[35] Carta 120 de São Papa Leão Magno (a Theodoro).

[36] SCHATZ, Klaus. Papal Primacy: From Its Origins to the Present, p. 34–35.

[37] CLEENEWERCK, Laurent. His Broken Body: Understanding and Healing the Schism Between the Roman, p. 155.

[38] Nicene and Post-Nicene Fathers Second Series — Eusebius Church History: Life of Constantine the Great, Oration in Praise of Constantine, p. 243, nota de rodapé 15.

[39] São Firmiliano, carta a Cipriano contra o Papa Estevão. Epístola 74, parágrafo II. Online em: https://www.newadvent.org/fathers/050674.htm

[40] Ibid., parágrafo 17.

[41] https://www.newadvent.org/cathen/06080b.htm

[42] GUETTÉE, Vladimir. The Papacy: Its Historic Origin and Primitive Relations with the Eastern Church, p. 90.; Ver também: https://www.johnsanidopoulos.com/2013/09/ecumenical-patriarch-or-universal-bishop.html?m=1

[43] Saint Gregory the Great, Book VII, Ep. XXXIII, NPNF II, 12, p. 226b.

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