Pecado Mortal e Venial: A perspectiva luterana clássica, por Martin Chemnitz

Retrato de Martin Chemnitz. Por: Ludger Tom Ring the Younger.

Prefácio

Estes trechos são extraídos da Loci Theologici de Martin Chemnitzna qual ele trata da distinção entre pecado venial e mortal, indo contra a ideia de que era uma “invenção papista da era escolástica”.

Julgo necessário por hoje em dia haver uma clara disputa com alguns que acreditam que todo pecado é de igual valor ou, no mínimo, são incapazes de nos separar do Criador, principalmente por conta de uma má compreensão da expressão simul justus et peccator.

Conforme exposto por Karl Barth, os reformados não concordam com uma distinção entre venial e mortal por conta dela. Parafraseando-o:

“(…)assume-se um conceito quantitativo de pecado [na distinção] que não pode ser unido à gravidade decisiva do juízo divino e à situação humana sob este juízo. Pode servir apenas para ocultar a profundidade da miséria humana e, portanto, a profundidade da graça gratuita de Deus” ¹

No entanto, na tradição luterana a mesma posição não se encontra. Os católicos luteranos sempre distinguiram os pecados veniais dos mortais; em clara oposição a ala reformada e anabatista da Reforma. A distinção confessional, muito bem situada nas palavras de David Hollaz, se encontra do seguinte modo:

“Um pecado mortal precipita o pecador em um estado de ira, morte e condenação, de modo que, se ele morresse neste estado, sem arrependimento, seria eternamente condenado; mas um pecado venial, porque tem o perdão como acompanhante inseparável, pode consistir na graça de Deus e na fé salvadora.” ²

Lutero também pressupõe tal distinção quando diferencia, diversas vezes, entre aqueles pecados com os quais a fé e o Espírito Santo não podem coexistir, e os pecados de fraqueza e concupiscência que permanecem na carne do crente batizado.³

Nossa preocupação, então, é se há ou não pecados que levam à morte eterna, sendo considerados mortais e pecados que, por uma razão ou outra, não, sendo assim declarados veniais. Neste ponto nos voltaremos para Chemnitz e sua breve análise das Escrituras no que tangem ao assunto.

Sem mais enrolar, desejo uma boa leitura.


Estes males no [homem] regenerado são contrários à lei de Deus, como Paulo testifica em Romanos 7; e os homens piedosos em seus verdadeiros pesares, até certo ponto, entendem quão grande é essa perversão e a magnitude dos males. Mas porque a pessoa que é recebida quando o conhecimento de Cristo é aceso em sua mente e a fé em seu coração e o Espírito dado, e porque a pessoa também reconhece sua fraqueza, deplora isso, tem vergonha do conhecimento da ira de Deus contra seus pecados, pede perdão, e luta contra as primeiras chamas do desejo, para ele esses males são pecados veniais, isto é, são perdoados, com o resultado de que não expulsam o Espírito Santo e a fé, e a pessoa fica em estado de graça.

Paulo ensina isso claramente em Romanos 8:1, quando diz: “De agora em diante, pois, já não há nenhuma condenação para aqueles que estão em Jesus Cristo”, isto é, mesmo que os pecados estejam presentes neles, esta fraqueza que mencionei, e os desejos maus, ainda assim a pessoa foi recebida por Deus e sua condenação retirada, como Paulo disse anteriormente: “agora não estais mais sob a lei, e sim sob a graça” (Rom. 6:14).

Mas a afirmação é feita: “Nada é pecado a menos que seja um ato da vontade”. No entanto, as trevas, a dúvida, os pecados da omissão e os desejos repentinos e inesperados que precedem um ato de julgamento e um assentimento não são atos da vontade ou voluntários. Assim, este sofisma pode ser facilmente refutado, pois a afirmação: “Nada é pecado a menos que seja um ato da vontade ou voluntário”, fala incorretamente da lei civil, mas não do julgamento da lei divina.

Pois o fato é que as trevas da mente, as dúvidas, as grandes e numerosas omissões e as muitas e inesperadas e repentinas chamas do desejo são pecados, ainda que não sejam voluntários, como diz Paulo: Não faço o bem que quereria, mas o mal que não quero.” (Rom. 7:19). João está falando das mesmas coisas quando diz: “Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós. (1º João 1:8), pois ele está falando da fraqueza e emoções perversas que ocorrem no regenerado, não de suas quedas reais que são contra a consciência, isto é, quando eles voluntariamente se entregam a desejos corruptos.

Assim, Paulo também faz uma distinção entre os pecados daqueles que permanecem na graça e aqueles que rejeitam a graça: “se viverdes segundo a carne, haveis de morrer; mas, se pelo Espirito mortificardes as obras da carne, vivereis” (Rom. 8:13) isto é, se a sua vontade ceder às concupiscências depravadas e se desviar de Deus consciente e voluntariamente é contrário ao mandamento de Deus, recusa-se a arrepender-se, a temer a Deus e a crer Nele, que é o que agrada a Deus, sua vontade faz mal à sua mente, de modo que não pode invocar a Deus e com a perda da graça e do Espírito Santo volta novamente à morte, isto é, atrai sobre si a ira de Deus e o castigo eterno, assim como Adão e Eva, quando caíram, perderam a graça e trouxeram sobre si a terrível ira de Deus.

Mas se pelo Espírito você mortifica as obras da carne, você viverá. Ele chama os desejos depravados e a negligência de nossa natureza perversa de “obras da carne”. Mas então ele continua dizendo que seremos vitoriosos, isto é, reteremos a graça e o Espírito Santo, se lutarmos contra esses desejos perversos. Este ponto é explicado mais claramente em outras passagens, onde é prescrito que haja no regenerado a justiça de uma boa consciência. “Esta recomendação só visa a estabelecer a caridade, nascida de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera” (1º Timóteo 1:5).

As passagens bíblicas subjacentes a esta doutrina

Em primeiro lugar, devemos observar os lados da matéria (como se costuma dizer nas escolas), ou seja, em quais passagens da Escritura a referida doutrina é estabelecida. Pois assim como os alunos nas faculdades de direito são direcionados aos capítulos e títulos de suas disciplinas nos quais podem encontrar o tratamento completo deste assunto, também é possível provar cada ponto por uma passagem da Escritura, mas a escolha do declarações adequadas devem ser feitas para que haja sempre uma confirmação ou uma refutação apropriada ao assunto.

Por exemplo, no ensino dos anabatistas há alguns que clamam que esta distinção entre pecado mortal e venial é um artifício dos escolásticos. Mas as Escrituras têm certas ilustrações muito claras dessa distinção, de modo que não pode ser negada. Vou produzir algumas dessas declarações em que ambos os tipos de pecado estão incluídos: “quem pode, entretanto, ver as próprias faltas? Purificai-me das que me são ocultas” (Salmos 19:12).

Aqui ele usa uma palavra derivada de shaµgag, que se refere a fazer algo sem saber e sem considerar; dá a ideia de algo feito por ignorância ou falta de prudência ou sem pensar bem. Os gregos usam a palavra paraptoµmata (transgressões). No Alemão, se lê: Wenn einer nach eineem Dinge greifft /und einen Fehlgriff thut (quando uma pessoa alcança algo e comete um erro crasso). “Proteja Seu servo dos pecados presunçosos”, que na Vulgata se lê ab alienis, isto é, “dos pecados dos outros”. No hebraico, a raiz é zuµd, que significa “ele transbordou” ou “inchou” ou “ele o fez por orgulho e malícia”.

A LXX diz apo allotrioµn“Poupe-me do ataque de estranhos”. Eles estavam tentando expressar que os filhos do reino sofrem oposição de estranhos. Observe também Jó 19:27, onde a palavra zaµr é usada: “Os outros não verão a Deus”. Portanto, eles tomaram conhecimento dos pecados que nos tornaram estranhos ao reino de Deus e pelos quais nossa adoção como filhos de Deus está perdida. Assim, Davi fez uma distinção entre “erros” que acontecem por falta de pensamento e aqueles pecados que são cometidos por orgulho, audácia e presunção. Ele orou para ser removido dessa teimosia e acrescentou: “então serei íntegro e limpo de falta grave.” (Salmos 19:13), ou seja, terei uma boa consciência e saberei que o resto de meus pecados estão cobertos. Aqui ele usa a raiz hebraica paµsha, um termo que significa andar sem fé, quebrar a Lei maliciosamente e mentir perversamente.

Em Números 15:27–30 há uma distinção entre os sacrifícios, quando a alma pecou por erro ou ignorância e quando pecou por orgulho ou obstinação “com mão presunçosa” sem arrependimento, pois abaixar a cabeça é sinal de arrependimento. Lutero traduz este “auss Frevel und Muthwillen,” como“maldade e devassidão”. O próprio Deus quis mostrar essa distinção na cerimônia pública: “Feliz aquele cuja iniquidade foi perdoada, cujo pecado foi absolvido” (Salmos 32:1). Isso mostra que os pecados estão realmente presentes no regenerado porque a palavra “coberto” é usada, há uma distinção entre os pecados. Alguns são cobertos, isto é, pelo nosso arrependimento, mas outros são descobertos quando não há arrependimento, para que possam se manifestar.

“Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós. (1º João 1:8); e ainda assim ele diz: “todo o que peca não o viu, nem o conheceu” (1º João 3:6). Essas declarações parecem contradizer-se, mas são facilmente conciliadas.

No 1º capítulo ele está falando daqueles que foram lavados no sangue de Cristo, mas ainda têm pecado. Mas no 3º capítulo ele está tratando de pecados premeditados que, portanto, são um tipo diferente de pecado. Novamente o mesmo João diz na mesma epístola: “Aquele que peca é do demônio” (3:8), e “Todo o que é nascido de Deus não peca” (3:9). Assim, João está demonstrando que há uma diferença entre ter pecado e cometer pecado. Este último é mais sério do que o anterior, embora às vezes sejam tratados como um.

Pois o pecado ainda se apega a todos nós, e ninguém pode dizer que é absolutamente puro de todos os pecados. No entanto, os piedosos pela graça do Espírito resistem ao pecado. Mas aquele que cumpre sua vocação e traz desejos malignos para seu trabalho, em certo sentido está se treinando na arte de pecar. Dele Cristo diz em João 8:34: “todo homem que se entrega ao pecado é seu escravo”, e em Mateus 7:23: “Nunca vos conheci. Retirai-vos de mim, operários maus!”.

Cristo não quer afastar de si todos os que têm iniquidade (pois se Ele “tiver em conta nossos pecados (…) quem poderá subsistir diante de vós?” [Sl 130:3]), mas apenas os que cometem iniquidade, dos quais o profeta Ezequiel pronuncia em 18:24; E, se um justo abandonar a sua justiça, se praticar o mal e imitar todas as abominações cometidas pelo malvado, viverá ele? Não será tido em conta qualquer dos atos bons que houver praticado. É em razão da infidelidade da qual se tornou culpado e dos pecados que tiver cometido que deverá morrer”.

Paulo em Romanos 7:23 e 8:1 diz: “Sinto, porém, nos meus membros outra lei, que luta contra a lei do meu espírito e me prende à lei do pecado, que está nos meus membros. (…) De agora em diante, pois, já não há nenhuma condenação para aqueles que estão em Jesus Cristo”. Portanto, há pecado habitando em nós que tenta nos manter em cativeiro, e aqueles que seguram as mãos com ele e são vencidos por ele são conduzidos à condenação. Mas se eles lutam contra isso e estão em Cristo Jesus, mesmo que o pecado ainda esteja em seus membros, para eles não há condenação. Este é o pecado venial.

Paulo acrescenta em Romanos 8:13: “se viverdes segundo a carne, haveis de morrer”É óbvio que ele está falando aqui do regenerado. Para o não-regenerado ele diz em Efésios 2:1 e Colossenses 2:13: “E vós outros estáveis mortos por vossas faltas, pelos pecados”Mas depois que eles pela fé foram convertidos a Cristo e nasceram de novo, eles foram ao mesmo tempo trazidos de volta à vida, para que pudessem ser reconciliados e viver. Mas essas pessoas ‘morrerão’ novamente se continuarem a viver de acordo com a carne, ou seja, quando perdem a vida, pois correm apressados para a condenação eterna.

1º Coríntios 6:10 e Gálatas 5:21 nos diz: “os que as praticarem [tais coisas] não herdarão o Reino de Deus!”O grego usa a palavra kleµronomein, um termo aplicado ao regenerado. Pois aqui eles são “herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo” (Rm. 8:17). Mas aqueles que cometem esses crimes terríveis e as obras da carne perdem novamente sua herança, adoção e bênção, e como Efésios 5:5 diz: “eles não tem herança no Reino de Deus”. Assim, ele fala no tempo presente, “eles não têm”, porque eles o perderam. Pelo termo “reino de Cristo” entende-se o reino da graça do qual 1º Coríntios 15:24 fala quando diz que o reino de Deus será entregue ao Pai e ele chama isso de reino da glória nesta vida. O que ele está dizendo é o seguinte: muitos que cometem esses pecados prometem imunidade a si mesmos, mas se enganam com falsas persuasões. Pois aqueles que fazem tais coisas não têm lugar nem no reino da graça nesta vida, nem irão habitar no reino da glória na vida por vir.

“Dessas coisas provém a ira de Deus sobre os descrentes” (Colossenses 3:6). A respeito desses incrédulos que não foram convertidos, João Batista diz em João 3:36:“quem não crê no Filho não verá a vida, mas sobre ele pesa a ira de Deus.” (Jo 3:36). Com isso ele quer dizer que eles já estão sob a ira de Deus. Mas Paulo diz aqui que “por conta destas coisas vem a ira de Deus”. Assim, eles estavam anteriormente sob a graça, mas por conta“destas coisas” a ira de Deus voltará sobre eles. Assim, aqueles que estão sob a graça, se voltarem a praticar ações contrárias à consciência, podem ofender a Deus de modo que Sua ira retorne sobre eles.

Para que os regenerados não voltem a tais ações, o apóstolo os adverte cuidadosamente: “Pois sobre tais pessoas vem a ira de Deus”. É como se do coração de Deus fosse derramada Sua ira, que antes havia sido tirada pela fé. A descrença inclui tanto a impenitência quanto a falta de fé. Como diz em João 3:36: “Quem não crê no Filho não verá a vida” e Deuteronômio 21:18 fala de um filho teimoso e rebelde, um adjetivo frequentemente atribuído aos israelitas no Antigo Testamento. Observe também em Números 14:9, 20:10, Deuteronômio 9:24 e em outros lugares.

Notas de Rodapé

Extraído da 2º Loci Theologici de Martin Chemnitz, Locus XVI: “The Difference Between Mortal and Venial Sin”. Concordia Publishing House.

[1] — Church Dogmatics Vol.IV, P.493

[2] — Citado em Heinrich Schmid, The Doctrinal Theology of the Evangelical Lutheran Church, trans. Charles A. Hay and Henry E. Jacobs (Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1899), 254.

[3] — Uma passagem que Lutero leva muito em consideração é 1º São João 5:16–17, em que há um pecado distinto que ‘leva à morte’ (pros thanaton) e o pecado que ‘não leva à morte’ (ou pros thanaton). Lutero identifica o ‘pecado para a morte’ (principalmente mas não somente) como a heresia — a rejeição teimosa e persistente da verdade, ou então a impenitência até o fim. Em suas palavras: “Seu pecado, porque é defendido depois de suficientemente revelado e conhecido, é mortal; pois resiste à graça de Deus, o meio de salvação e a remissão de pecados.” (LW 30.325). O pecado venial, por outro lado, inclui os pecados de ignorância ou fraqueza do cristão, conforme Hollaz e Chemnitz defendem. Assim, embora sejam verdadeiramente pecaminosos, não resultam na perda de fé e nem em condenação. Citando Romanos 7:25 sobre o conflito entre a mente que serve à lei de Deus e a carne que é serva do pecado, Lutero comenta que “O cristão é dividido em duas partes. Às vezes, uma pessoa é surpreendida quando aquele nascido [de Deus] não é sustentado com base na Palavra de Deus e a carne prevalece, de modo que ela faz o que não faria em outras circunstâncias” (LW 30.326).

Deixe um comentário