Luteranos creem na consubstanciação?

Lutero, Melanchton, Pomeranus e Cruciger traduzindo a Bíblia. Autor: Pierre Antoine Labouchère (1807-1863)

É bem comum haver o desentendimento de que a Igreja Luterana, junto de seus teólogos, defendem a consubstanciação, o que é um erro terrível. Entretanto, tal pensamento não encontra lugar quando lemos o que os teólogos e doutores da Igreja supracitada defendem e defenderam.

Conforme declara Johann Lorenz von Mosheim, historiador da Igreja Luterana Alemã:

“Erram os que dizem que acreditamos na Impanação. Nem são mais corretos os que nos acusam de crer na Subpanação. Igualmente infundada é a acusação de que cremos na Consubstanciação. Todas essas opiniões diferem muito da doutrina de nossa Igreja.”[1]

Dito isto, realizaremos a tarefa de diferenciar ambas as doutrinas; começando por explanar a consubstanciação e, posteriormente, a união sacramental; as diferenciando de maneira definitiva.

O que é a consubstanciação?

Um dos primeiros defensores da doutrina da Consubstanciação foi Berengário de Tours, defendia que a hóstia conservava sua substância anterior, porém, ao mesmo tempo, adquiria a nova substância do Corpo de Cristo, resultando numa terceira substância. Sua explicação da Eucaristia foi rejeitada pelos seus contemporâneos, sendo negada em diversas ocasiões.

De sua controvérsia acerca da Eucaristia veio os frutos do que viria a se tornar a posição oficial da Igreja de Roma acerca da transubstanciação, com Pedro Lombardo e St. Tomás de Aquino nos séculos XII e XIII (não dizemos, com isso, que houve uma influência de Berengário em São Tomás; mas que sua controvérsia deu mais motivos a Igreja de Roma sustentar um dogma no aspecto da Presença Real).

Essa doutrina renasceu na pré-Reforma Inglesa no século XIV, sendo adotada como doutrina pelos Lollardistas, os seguidores de John Wycliffe que negavam a transubstanciação papista.

Wycliffe argumentava que a transubstanciação violava as regras básicas da metafísica, afirmando que quando uma substância é destruída, seus acidentes também são destruídos. Segundo ele as substâncias do pão e do vinho permanecem enquanto o Espírito do Deus vivo estiver nelas, de modo que contêm a “presença real” do Cristo, embora continuem sendo pão e vinho. Em suas próprias palavras:

“Assim como Cristo é duas substâncias, a saber, terrena e divina, também esse sacramento é o corpo do pão material e o Corpo de Cristo”[2]

Assim, eles afirmavam que o corpo e o sangue estão presentes, como pão e vinho, de maneira natural. O verdadeiro Corpo e Sangue de Cristo se encontrariam presentes real e localmente em e com a substância do pão e do vinho sem as modificar diretamente, pois o pão e o corpo formariam uma “terceira” substância na Comunhão, já que não se extingue as substâncias naturais dos elementos da Ceia.

O que é a União Sacramental e como ela rejeita a consubstanciação?

Primeiro, devemos reforçar a ideia de que a doutrina da União Sacramental se trata da rejeição de alguma explicação filosófica acerca do mistério da Eucaristia, pois como afirmei, ela é um mistério. Deve-se notar, entretanto, que uma explicação ainda é devida do que é, de fato, a União Sacramental.

Então, nos é preferível que tenhamos como uma descrição do que se dá; e não uma explicação do que ocorre. Trataremos, portanto, de elucidar a descrição da doutrina da Presença Real pelos óculos da União Sacramental; não da explicação do que ocorre.

Advogando pela unio sacramentalis, rejeitam-se tanto a transubstanciação quanto a dita consubstanciação. A acusação de que a Igreja Luterana sustenta essa doutrina monstruosa foi repetida inúmeras vezes com o passar dos tempos. Mesmo com os protestos dos luteranos, a falsidade ainda circula.

A consubstanciação é claramente rejeitada na Fórmula de Concórdia, pois ela afirma que o corpo e o sangue de Cristo estão presentes “Sob o pão, com o pão, no pão” (Artigo VII). Esta declaração não permite a consubstanciação, pois enquanto as palavras “com” e “no” pão e vinho fora de contexto poderiam possivelmente indicar uma mistura, a palavra “sob” não. Conforme a Wittenberg Concord nos indica:

“Negamos a transubstanciação, e que o corpo esteja localmente no pão…”[3]

Não defende-se que a manducação seja coisa apreendida pelos sentidos ou pela razão, mas que é sobrenatural, misteriosa e incompreensível. Assim ensina o Livro de Concórdia:

“Nós cremos, ensinamos e confessamos que o verdadeiro Corpo e Sangue de Cristo são recebidos não só espiritualmente pela fé, mas também oralmente com o pão e o vinho, embora não de forma carpanaica, mas de forma sobrenatural e celestial, por conta da união sacramental dos elementos…”[4]

Portanto, de forma nenhuma “em, com e sob”, denotaria uma consubstanciação; pois essas palavras designam não o modo da presença, mas o objeto. Assim, objetivo delas é o de parafrasear o simples fato de que pão e vinho continuam pão e vinho, sendo, porém, no ato sacramental, portadores da presença real do corpo e sangue de Cristo. A fórmula apresentada aqui não detém a pretensão de adentrar no âmbito especulativo de alguma fórmula escolástica. Quando as palavras “em, com e sob” são usadas, não implica-se numa consubstanciação; pois o comer e o beber do Corpo e do Sangue não são físicos, mas místicos e sacramentais.

Conforme o Rev. Dr. David Scaer ensina:

“As Confissões Luteranas, ao descreverem o Corpo e o Sangue de Cristo como estando ‘em, com e sob’ o pão e o vinho, podem ter permitido que outros [erroneamente] usassem ‘consubstanciação’ para descrever essa visão. No entanto, essas preposições apenas pretendiam afirmar que os elementos terrestres eram realmente o corpo e o sangue de Cristo, não explicar como os elementos terrestres e divinos estavam espacialmente relacionados. Nas primeiras Confissões Luteranas, as três preposições não eram usadas juntas.”[5]

A União Sacramental defende que assim como as naturezas humana e divina imutáveis de Cristo estão inseparavelmente unidas; o pão natural e o verdadeiro corpo de Cristo estão unidos (da mesma forma o vinho e o sangue). Esta não é uma união pessoal (como a das duas naturezas de Cristo), ou uma união mística (como aquela entre Cristo e o crente), mas uma união sacramental única e incompreensível; não uma combinação, mistura ou fusão natural, conforme os adeptos da consubstanciação advogam; mas uma união sobrenatural; a qual a razão humana não compete compreensão.

Chemnitz nos ensina que ao falar, por exemplo, da representação do Espírito Santo na pomba (Lc 3:22), ela não significa uma “união hipostática ou inseparável, ou uma inclusão local, ou uma mistura de substâncias, ou alguma união física ou grosseira”. Em vez disso nós defendemos que “em uma forma invisível e celestial, que é impossível para nós entendermos, acreditamos que a pomba e o Espírito Santo estão real verdadeiramente unidos para esta ocasião”. Este exemplo é “paralelo à predicação pela qual nas Palavras de Instituição o corpo de Cristo é predicado do pão na Ceia e o sangue de Cristo é predicado no vinho”.

Declaramos, então, que a dupla matéria [pão-corpo/vinho-sangue] se combina em uma unidade sacramental, isto é, como Cristo dá Seu Corpo com o pão e Seu Sangue com o vinho, recebemos com a boca não apenas o pão e o vinho, mas também o Corpo e Sangue de Cristo. Visto que, no entanto, a união da coelestis material com a material terrena não é natural ou local, mas sobrenatural (sem consubstanciar ou transubstanciar), por consequência se recebe o Corpo e o Sangue de Cristo com a boca não de uma maneira natural, mas de uma maneira sobrenatural. O Dr. Francis Pieper explica a doutrina luterana:

“Dizemos: (1) Porque a dupla matéria se combina em uma unidade sacramental, isto é, como Cristo dá Seu Corpo com o pão e Seu Sangue com o vinho, recebemos com a boca (manducatio oralis) não apenas o pão e o vinho, mas também o Corpo e Sangue de Cristo. (2) Entretanto, visto que a união da coelestis material com a material terrena não é natural ou local, mas uma união sobrenatural (sem localis inclusio, impanatio, consubstantiatio), recebemos o corpo e sangue de Cristo com a boca não de uma maneira natural, mas de uma maneira sobrenatural.”[6]

É, portanto, impossível definir a doutrina luterana como consubstanciação, pois a frase “em, com e sob” quando em seu contexto apropriado nos serve para repudiar o erro papista da transubstanciação e o lollardista da consubstanciação, enquanto se afirma, também em oposição ao erro dos calvinistas [que defendiam uma presença espiritual, isto é, pneumática], a doutrina bíblica da presença real, por meio da união sacramental, pois:

Nós rejeitamos e condenamos o método carpenaita de comer o corpo de Cristo, como se tivéssemos ensinado que Sua carne foi rasgada com os dentes e digerida como qualquer outro alimento. (…) Por outro lado, nós mantemos e cremos, de acordo com as palavras simples do testamento de Cristo, o verdadeiro, mas sobrenatural comer do corpo de Cristo e também beber de Seu sangue. Os sentidos e a razão humanos não compreendem. Mas, como em todos os outros artigos de fé, nossa razão é levada cativa à obediência de Cristo [2 Coríntios 10: 5]. Este mistério não é compreendido de nenhuma outra forma senão pela fé somente, e é revelado na Palavra somente.”[7]

Portanto, na Ceia, onde está a Palavra e o mandato do Cristo, seu Corpo e Sangue são recebidos, de modo que agora eles (Corpo e Sangue) estão presentes não localmente, mas verdadeiramente e de forma celestial, isto é, ilocal, de maneira definitiva. Ele não exerce essa presença d’uma forma ubiquitária, mas conforme sua própria vontade numa Presença Sacramental. Esse modo de estar presente é distinto de Sua presença local por ela não ter qualidades dimensionais, sendo assim não limitada por estar “em um lugar” só. Como Johannes Brenz nos ensina:

“Isso certamente não acontece localmente, nem circunscritivamente, ou mesmo por transubstanciação, como brincam os papistas, mas verdadeiramente, realmente e substancialmente de uma forma celestial, incompreensível para a razão humana.” [8]


Notas e Referências

[1] Charles Porterfield Krauth, History of Christian Doctrine P.341.

[2] Apud John Stacey, John Wyclif and Reform (Philadelphia, Westminster Press, 1964, p.107).

[3] A Citação é da “Wittenberg Concord”; da qual fiz um Apud deste site aqui.

[4] Formula of Concord, Epitome, Affirmative Theses, 6.

[5] John H. Armstrong, Understanding Four Views on the Lord’s Supper (Grand Rapids: Zondervan, 2007), Kindle edition, location 1357.

[6] Francis Pieper, Christian Dogmatics, Vol. III. P.362.

[7] Epitome of the Formula of Concord, VII, 42.

[8] Johannes Brenz, Christology as It Relates to the Lord’s Supper.

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