Disputatio Theologica de Philip Melanchthon sobre a Justificação

Introdução

Desde o início do século XIV o sistema escolástico medieval usou o gênero “disputa” como um meio de examinar a promoção de um degrau acadêmico ao próximo. Em cada estágio do progresso acadêmico, estudantes provavam suas habilidades ao defender teses escritas por seus professores ou eles mesmos perante os instrutores e estudantes de sua faculdade. Pelo tempo de Lutero e Melanchthon, A “disputa”, como uma coletânea de breves afirmações teóricas sobre um tema também se tornou um meio de provocar discussões entre colegas à parte do exame. As 95 Teses de Lutero sobre as indulgências são um exemplo desse uso do gênero. Os reformadores aboliram o uso da disputa por mais de uma década, restaurando-a para o exame acadêmico em 1533. No entanto, durante toda a década seguinte, eles continuaram a empregar o gênero para provocar a discussão de questões importantes.
Na primavera de 1531, quando Melanchthon estava finalizando a primeira edição de sua Apologia da Confissão de Augsburgo, ele compôs 38 Teses sobre a doutrina da justificação e sua relação com as obras da vida cristã. Aparentemente, ele as imprimiu e também as distribuiu a vários amigos a fim de obter reações às maneiras pelas quais estava desenvolvendo seus insights sobre o ensino bíblico sobre a justiça.
Essa tradução em inglês [N.T.: na qual o tradutor para o português se baseia] de sua disputa da “justificação pela fé, não pelo amor” baseia-se no texto da impressão de 1531, conforme editado por Johannes Haussleiter em 1898, “Melanchthons loci praecipui und Theses tiber die Rechtfertigung aus dem Jahre 1531”, em Abhandlungen Alexander von Oettingen zum siebenzigsten Geburtstag gewidmet von Freunden und Schiilern (Munique: Beck, 1898), pp. 245-262.

Disputatio de Philip Melanchthon:
“Somos Justificados pela Fé e Não Pelo Amor”

Nós Recebemos o Perdão dos Pecados Somente pela Fé em Cristo
  1. Certamente nossos oponentes têm de admitir que o perdão dos pecados é necessário, acima de tudo, na justificação, visto que todos nós estamos sob o pecado [Rom. 3:9, 23].
  2. É impossível obter o perdão dos pecados sem a fé em Cristo, isto é, sem aceitar Cristo como nosso mediador e pô-lo contra a ira de Deus. Essa fé consola a consciência e a traz de volta à vida.
  3. É ímpio afirmar que recebemos a remissão dos pecados por nosso amor a Deus, porque isso é o mesmo que dizer que temos a remissão dos pecados por causa de nossa própria obra e não por causa de Cristo. Dessa forma, o mérito de Cristo é erradicado e destruído.
  4. De fato, é impossível que o amor exista a menos que a misericórdia seja apreendida primeiro; caso contrário, o coração foge da ira de Deus e se enfurece com Seu julgamento.
  5. Logo, está claro que somente a fé justifica, ou seja, a partir de nós, seres humanos injustos, ela nos torna seres humanos aceitáveis a Deus e nos regenera.
  6. Há três tipos de justiça. O primeiro é o que se deriva da razão. O segundo é aquele que se conforma à lei de Deus. O terceiro é aquele que o Evangelho promete.
  7. É certo que não somos justificados pela razão e nem pela lei, mas pelo Evangelho, pois, de outra forma, o Evangelho teria sido ensinado em vão.
  8. É certo que Cristo é o mediador. Não temos acesso a Deus por meio da razão ou da lei antes de termos recebido tal acesso por meio de Cristo [Rom. 5:2].
  9. Tampouco temos acesso por meio de Cristo de qualquer outra maneira que não seja pela fé.
  10. A justiça da razão é a justiça das obras, e a razão a produz. Os seres humanos entendem o que é essa justiça.
  11. É falso que mereçamos o perdão dos pecados por meio de obras da razão, como práticas monásticas e similares.
  12. Pois isso atribuiria o ofício mediador alcançado por Cristo a essas obras da razão. Temos acesso a Deus por meio de Cristo, pela fé, e não pelas obras da razão.
  13. A justiça da lei consiste no amor a Deus e ao próximo. A razão humana não entende esse tipo de justiça. E, embora os sofistas falem sobre amar a Deus, eles não conseguem mostrar o que é o amor porque a natureza humana, sob o domínio da concupiscência, não consegue compreender o que significa amar a Deus.
  14. O ofício de mediador não pode ser atribuído ao nosso amor, mesmo que esse amor esteja presente. Assim, não temos acesso a Deus em virtude de nosso próprio amor, mas pela fé por causa de Cristo.
  15. Assim sendo, Paulo diz que não somos justificados pela lei, mas pela promessa [Gálatas 3:18, 24].
  16. É necessário, portanto, que a justiça da promessa esteja presente antes da justiça da lei ou da razão.
  17. A promessa é recebida pela fé. Por isso, primeiro somos justificados pela fé, pela qual recebemos a promessa de reconciliação pela fé. Em seguida, guardamos a lei.
  18. Condenados são aqueles que se aproximam de Deus por meio da lei ou da razão sem Cristo, o mediador.
Sobre o Amor e o Cumprimento da Lei
  1. Não obstante, como nascemos de novo pela fé e recebemos o Espírito Santo, a justiça da lei está presente em nós, a saber, o amor a Deus e ao próximo, o temor a Deus, a obediência às autoridades civis e aos parentes, a paciência e outras virtudes semelhantes.
  2. Esse cumprimento inicial da lei é produzido nos que já foram justificados e nasceram de novo.
  3. Logo, o amor não regenera.
  4. Portanto, a fé que regenera já tornou a pessoa justa de antemão.
  5. Não se deve ousar transferir posteriormente o ofício de mediador ao cumprimento humano da lei.
  6. Igualmente, posteriormente não somos declarados justos aos olhos de Deus por causa desse cumprimento da lei, mas somente porque temos acesso a Ele por meio de Cristo, pela fé.
  7. E esse cumprimento da lei é extremamente escasso e impuro pelo fato de os resquícios do pecado permanecerem em nós.
  8. E, ainda assim, a justiça da lei segue necessariamente a fé.
  9. Isso deve ser esclarecido para que não busquemos a justiça da lei de modo a destruir a fé e confiar no cumprimento da lei. Certamente é necessário insistir no fato de que somos declarados justos por causa de Cristo pela fé.
  10. Os sofistas falam apenas acerca do cumprimento da lei, eles não falam de fé. Eles imaginam que somos considerados justos pelo fato de cumprirmos a lei e não pela fé.
  11. E somos justos mediante essa justiça [da fé], e não mediante a justiça da lei, a qual Deus não aceita, senão por intermédio da fé em Cristo, o mediador.
resposta aos argumentos dos adversários
  1. Portanto, todas as declarações sobre obras podem ser facilmente explicadas. A lei nunca pode ser cumprida ou, se for cumprida, não é aceitável a menos que primeiro nos agarremos ao mediador, Cristo, pela fé. Assim, Cristo diz: “sem mim nada podeis fazer” [João 15:5].
  2. Portanto, sempre que as obras são enaltecidas, é necessário entender que a fé está presente pelo fato de que, sem Cristo, ninguém agrada a Deus [Rom. 14:23; Heb. 11:6].
  3. É insano imaginar que a lei realmente seja suficiente sem o evangelho, ou seja, sem Cristo. Portanto, somente por causa da fé as obras são aceitáveis a Deus.
  4. Tiago ensina corretamente: “Somos justificados pela fé e pelas obras” [2:24], porque as obras justificam de acordo com a justiça da lei, que certamente deve seguir a fé. No entanto, essa justiça da lei não é justiça aos olhos de Deus, exceto por causa da fé.
  5. E as obras resultantes, por agradarem a Deus por causa da fé, também são meritórias, não para a justiça ou a vida eterna, mas para outras bênçãos do corpo e da alma.
  6. Pois a lei paga um salário, e os que guardam a lei recebem certas recompensas.
  7. Quando dizemos que somente a fé justifica, isso deve ser entendido não apenas como o fato de que, no início, ela recebe o perdão dos pecados ou se dirige a Deus, mas também que, a partir de então, somente a fé é considerada como justiça por Deus, embora o cumprimento da lei necessariamente a siga. De fato, esse cumprimento da lei não é aceitável aos olhos de Deus, exceto por causa da fé.
  8. Dessa forma, as consciências têm um consolo seguro em Cristo por meio da fé, e sabem como essas obras devem ser realizadas e quais obras agradam a Deus e que, pela fé em Cristo, recebem o Espírito Santo para que possam praticar boas obras.
  9. Para resumir: As Escrituras aprisionam todos sob o pecado, para que o que foi prometido por meio da fé em Jesus Cristo possa ser dado àqueles que creem [Gl 3:22].
  10. Aristóteles disse, com razão e sabedoria, que a moderação na virtude deve ser determinada de forma geométrica, não aritmética.¹

Notas

  1. Melanchthon referiu-se à ideia de Aristóteles de moderação ou Média Dourada [Doutrina do meio-termo] nesses termos em seu Ethicae doctrinae elementorum libri duo de 1550 (CR 13:211-12). Ele definiu a ideia aristotélica de moderação não em termos “aritméticos”, ou seja, como um ponto a meio caminho entre opostos ou extremos, mas sim “geometricamente”, ou seja, entendida de forma proporcional ou relacional, com prudência e sabedoria. Ver W. E. R. Hardie, Aristotle’s Ethical Theory, 2d ed. (Oxford: Clarendon, 1980), 134-43, 189-90.

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