Infusão, imputação e Lutero

Distinguir infusão romana e imputação protestante é difícil de sustentar, considerando que Lutero frequentemente afirma que a justiça salvadora é “interior” ao invés de “exterior”

O tratado de Lutero “Da Liberdade Cristã”, de 1520, nos fornece rico material para esta investigação. Este é um tratado bem inicial, e não representa a compreensão maturada de Lutero sobre a justificação, mas é claramente um tratado reformacional, escrito dois anos após a sua “descoberta da Reforma”. Assim, é uma evidência importante que nos auxilia a determinar as verdadeiras diferenças entre romano e protestante.

Ao longo deste tratado, Lutero aborda a questão sobre como um pecador se torna em justo. Provavelmente tomando inspiração de Staupitz, ele responde utilizando uma metáfora matrimonial. Assim como o esposo e a esposa possuem “tudo em comum”, também Cristo partilha tudo que é seu com a alma fiel, assim como aceita tudo que a alma tem a oferecê-Lo:

“[…] a alma fiel pode apropriar e gloriar-se de tudo que Cristo possui como sendo seu, e de tudo que tem a alma Cristo se apropria como se fosse seu. Confiramos isso, e veremos coisas inestimáveis. Cristo é cheio de graça, vida e salvação; a alma está cheia de pecados, morte e condenação. Intervenha agora a fé, e acontecerá que os pecados, a morte e o inferno se tornam de Cristo, e a graça, vida e salvação são da alma. Pois se ele é o noivo, tem que, simultaneamente, aceitar o que é da noiva e compartilhar com a noiva o que é seu. […] Assim a alma do crente se torna livre de todos os pecados pelas arras de sua fé em Cristo, seu noivo, segura contra a morte e protegida do inferno, presenteada com eterna justiça, vida, salvação de seu noivo Cristo” [1]

Lutero não descreve a justiça como “imputada” ou “contada” ao pecador. O casamento é uma instituição legal, e nesse quesito Lutero está lidando com categorias legais. Mas a descrição da justificação dá menos ênfase aos acordo legais do matrimônio do que ao relacionamento pessoal, o dar e receber, entre marido e mulher. A justiça não é legalmente imputada, mas dividida, e ela se torna posse do pecador tão verdadeiramente quanto a riqueza de um casamento se torna riqueza da esposa.

Então podemos perguntar: em que sentido isso é uma doutrina protestante da justificação?

Um segundo trecho do tratado é ainda mais chocante. Lutero inicia seu tratado distinguindo entre o “homem interior” e o “homem exterior”, e argumenta que a fé pertence ao “homem interior” enquanto as obras pertencem ao “homem exterior”. Pela fé, Cristo é unido ao homem interior, e por isso a fé é superior à todas as obras. Esta união do Cristo Justo com o homem interior é a pressuposição para a recepção da justiça pelo pecador:

“Pois nenhuma obra pode prender-se à palavra de Deus e estar na alma, mas nela reinam somente a fé e a Palavra. Assim como é a Palavra, tal se torna a alma por meio dela, da mesma forma como o ferro candente fica incandescente como o fogo por causa de sua união com o fogo, para que fique claro que à pessoa cristã basta sua fé para tudo, e que não tem necessidade de obras para ser justificada. Se não precisa de obras, também não precisa da lei; se não precisa da lei, certamente está livre da lei […]” [2]

Na imagem do ferro e do fogo, a Palavra é o fogo e a alma é o ferro. Assim como o fogo transmite suas qualidades ao ferro com o qual é unido, a Palavra transmite Suas qualidades à alma que é unida a Ele pela fé. Justiça é uma das qualidades que a Palavra possui, e, portanto, uma das qualidades comunicadas à alma fiel. Aqui, novamente, a justiça não é imputada, mas dada e compartilhada. Esta é uma justiça alheia, pois o ferro não possui calor próprio e eventualmente perderá temperatura se for afastado do fogo. Ainda assim, de forma chocante, a justiça é transmitida – alguns poderiam dizer “infusa” – alma adentro.

Novamente: como, então, isso se difere da teologia romana? Em que sentido isso é uma doutrina protestante da justificação?

Não bastará dizer que Lutero ainda não havia se desvencilhado dos restos da doutrina medieval, pois este tratado é de clara orientação protestante, composto no mesmo ano que “O Cativeiro Babilônico da Igreja”, sua polêmica contra a teologia e prática sacramental romana. Porém, esta formulação parece “borrar” as distinções principais entre doutrina protestante e romana. Onde estão as linhas divisórias?

Estas linhas se tornam claras quando colocamos Lutero contra a soteriologia medieval e nos lembramos o protesto da Reforma contra a idolatria medieval romana. A construção de Lutero depende de uma renúncia de qualquer noção de graça criada. Na ilustração do ferro-no-fogo, Lutero está mais próximo de Pedro Lombardo do que de Tomás de Aquino (na forma como os dois são tipicamente compreendidos): o calor depende da presença contínua da Palavra flamejante, e a Palavra não deixa nenhum “depósito” permanente de graça criada. Com a analogia matrimonial, Lutero insiste que a justiça é um dom e é uma justiça alheia. Também não há nenhum sinal de esquema natural/sobrenatural, nem sugestão de natureza pura ou capacidade inerente de receber a graça. Pelo contrário, a analogia matrimonial sugere o oposto: humanos são criados precisamente para serem unidos uns aos outros, assim como a mulher foi criada para o homem; fomos criados como receptores “femininos” para conter o esposo em si.

A diferença crucial entre a imagem de Lutero e a visão romana de “justiça infusa” é que para Lutero é que a coisa infusa não é uma substância ou habitus, mas uma Pessoa. “Palavra” significa o vivo e eterno Verbo de Deus, que vem habitar na alma do fiel. Enquanto os teólogos medievais concebiam a graça como uma substância ou coisa criada, os teólogos protestantes ensinavam que a graça é simplesmente o favor de Deus para com os pecadores, expressa em Seu entregar próprio ao Seu povo e em Seus diversos dons que acompanhavam isto. A graça, insistem os reformadores, é uma e não múltipla, e a graça possui um nome, local e face humana – a face de Jesus Cristo. Jesus é a justiça de Deus em Pessoa, e somos justificados quando Ele habita em nós.

Lutero continua a fornecer explicações similares ao dom da justiça na justificação, em tratados posteriores. Lutero insiste, por exemplo, que Jesus é a graça de Deus:

“Cristo é a graça, misericórdia, justiça, sabedoria, conforto e salvação dado a nós por Deus sem qualquer mérito de nossa parte. Eu não digo como alguns o expressam em palavras cegas, “casualmente”, que Cristo concede justiça e permanece ausente em si, pois isso seria algo morto. Sim, [a justiça] não nos é dada de forma alguma, a menos que o próprio Cristo esteja presente, assim como o brilho do sol e o calor do fogo não estão presentes sem que haja sol ou fogo ” [3]

Lutero expande isso em uma doutrina da deificação:

“Somos preenchidos com ‘toda sorte de abundância de Deus’, que na maneira hebraica é o mesmo que dizer que somos preenchidos de todas as formas na qual ele nos completa, e, cheios de Deus, somos lavados como todos os dons e graças e somos enchidos do Espírito, de forma que isto nos faz corajosos e iluminados por Sua luz, e Sua vida vive em nós, Sua beatitude nos faz abençoados e Seu amor desperta o amor em nós. Em resumo, que tudo que Ele é e que Ele pode fazer está totalmente em nós e nos afeta vigorosamente, de forma que nos tornamos completamente divinos, não tendo uma parte ou sequer várias partes de Deus, mas que [O tenhamos] em toda abundância. Muito já foi escritos sobre como o homem deve se tornar divino, […] aqui a maneira correta e mais próxima de se chegar lá se apresenta para que nos tornemos cheios de Deus, para que não vos falte nenhum pedaço, mas tenham tudo unido, para que tudo que digam ou que pensarem, por todo lugar que forem – em resumo: que toda a sua vida – seja completamente divina” [4]

Em todas estas citações, Lutero diverge da justificação medieval não sobre a alocação da justiça salvadora, mas na natureza daquela graça e em todo framework cosmológico e teológico no qual opera.

[1] LUTERO, Martinho. ‘Martinho Lutero: Obras Selelecionadas: Volume 2 – O Programa da Reforma: Escritos de 1520’, pág. 442 – São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal Editora; Concórdia; Comissão Interluterana de Literatura, 1989.

[2] Ibid., pág. 441.

[3] LW 14:204

[4] WA 17.I:438, 14-28

Esse post foi originalmente escrito pelo Dr. Peter J. Leithart, pastor na Igreja Presbiteriana da Trindade em Birmingham (AL) e ex-professor da New Saint Andrews College

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