Calvino e Turretini adversus Pais da Igreja

Introdução

Esse artigo é uma adaptação de um florilégio que preparei alguns meses atrás. Trata-se de uma coletânea de trechos dos Pais da Igreja interpretando São João 20,26: Teria Cristo atravessado a porta ou não? Calvino e Turretini respondem no negativo, enquanto os Pais o fazem no afirmativo, junto dos teólogos luteranos.

O texto foi adaptado e mantido praticamente intacto.

A INTERPRETAÇÃO DE CALVINO E TURRETINI

Calvino argumenta que é uma “futilidade infantil” dizer que o corpo de Cristo atravessou portas fechadas, pois isto (supostamente) entra em contradição com a natureza humana. Ele resume:

“’Enquanto as portas estavam fechadas.’ Essa circunstância foi expressamente acrescentada, porque contém uma prova manifesta do poder divino de Cristo (…). Devemos, portanto, acreditar que Cristo não entrou sem um milagre, a fim de realizar uma demonstração de sua Divindade, por meio da qual ele poderia estimular a atenção de seus discípulos; e ainda assim estou longe de admitir a verdade do que os papistas afirmam, que o corpo de Cristo passou pelas portas fechadas.

Comentário ao Evangelho Segundo João (20:26)

Turretini segue de perto Calvino, argumentando na mesma linha ao assumir que é impossível que um corpo assuma uma presença que não seja estritamente local:

“Da impossibilidade de tal presença, visto que subverte a natureza e as propriedades de um verdadeiro corpo. Como possuidor de quantidade e extensão, um corpo verdadeiro deve ser visível e palpável, localizado, impenetrável e circunscrito; que é tão em um lugar que não pode ser em outro; por isso tem partes fora das partes, de modo que nem pode penetrar nem ser penetrado por outro corpo. (…) Cristo poderia ter entrado para os discípulos ‘estando as portas fechadas’ (ton thyron kekleismeuon, Jo. 20:19) (isto é, no momento em que eles haviam fechado as portas por causa do medo dos judeus), mas não ‘através das portas fechadas’ (dia thyron). Portanto, denota o estado em que os apóstolos se encontravam, mas não o modo de entrada. Pois, embora as portas estivessem fechadas, elas poderiam ter cedido ao Criador e se aberto à sua vontade.”

Compêndio de Teologia Apologética: Volume III, Tópico IX:VIII
A interpretação dos pais

“[Cristo] foi capaz de ser tocado [e] assim novamente Ele, d’uma forma incompreensível, passou pelo meio daqueles que procuravam feri-lo (Jo 8:59) e atravessou sem impedimento portas fechadas (Jo 20:26).

Santo Irineu (130 – 202) (Fragmento 52)

“Com todo o cuidado expressou-se o Evangelista: Chegou Jesus, estando fechadas as portas, e pôs-se no meio deles (Jo 20,26). Porventura foi penetrando a solidez das paredes e a espessura da madeira que atravessou o que por natureza é impenetrável? Pois achou-se de pé, com seu próprio corpo, não com um corpo fictício ou enganoso. Sigam, portanto, os olhos de tua mente o ingresso de Cristo que entra e, com Ele, entre na casa fechada o olhar de tua mente. Tudo está completamente fechado, mas aparece, no meio deles, Aquele por cujo poder todas as coisas estão abertas. Inventas coisas falsas sobre o que é invisível. Eu te peço com instância a razão das visíveis. Nada do que é sólido cede, nem, por sua natureza, a madeira e as pedras deixam passar algo, como por uma abertura invisível. O corpo do Senhor não desaparece para logo retornar do nada; então de onde vem o que está de pé no meio deles? Diante disto, calam-se o pensamento e a palavra. A verdade do acontecido supera a razão humana. Portanto, se nos enganamos ao falar de natividade, também podemos mentir acerca da entrada do Senhor. Digamos que não aconteceu este fato, porque não compreendemos o seu sentido. Se nossa compreensão falha, deixará também de existir o acontecido. Mas a confiança na autenticidade do que aconteceu vence nossa mentira. O Senhor, na casa fechada, achou-se no meio dos discípulos; também o Filho nasceu do Pai. Não negues que Ele ali estivesse, porque, devido à fraqueza da inteligência, não consegues entender a sua entrada através das paredes. Não queiras ignorar que, do ingênito e perfeito Deus Pai, nasceu o unigênito e perfeito Deus Filho, porque o poder pelo qual se deu esse nascimento excede o entendimento e a palavra.”

Santo Hilário de Poitiers (310 – 367) (Tratado Sobre a Santíssima Trindade 10:23)

“Pois ele não estava sobrecarregado pela carne, para não andar sobre as ondas (…), nem para não penetrar na parede sólida, atravessando-a com Seu corpo…”

Tractatus Super Psalmos 55:5

“Tomé teve motivos para se maravilhar e se espantar com o que viu: as portas estavam fechadas, e mesmo assim um Corpo atravessou barreiras impenetráveis aos corpos físicos, sem lhes causar qualquer prejuízo ou dano. Sim, é verdadeiramente extraordinário e maravilhoso que um corpo físico passe por uma substância sólida e impenetrável.

Santo Ambrósio (339 – 397) (Expositio Evangelii Secundum Lucam, Livro 10:168 [MPL 15])

“Pois para este fim, ele não apagou as marcas dos pregos, nem a da lança e entrou através de portas fechadas, pois seu [corpo] carnal levantou um espiritual, mas não outro além daquele que é, mas o próprio que é, unido à divindade, adornado na imaterialidade do espírito. (2) Pois se não era de uma imaterialidade do espírito, que tipo de abertura estava recebendo o corpo volumoso? Mas para que ele pudesse demonstrar que aquela mesma coisa que é corruptível [corpo] em nós está revestida de incorruptibilidade na verdade (pois se também é mortal, está revestida de imortalidade), ele entrou por meio de portas fechadas, para que ele pudesse demonstrar que aquilo que é denso é rarefeito, e aquilo que é mortal é imortal, e aquilo que é corruptível é incorruptível.”

Santo Epifânio de Salamina (310/320 – 403) (Ancoratus 91)

“Não antes da paixão, mas depois, o Senhor estava no meio dos discípulos quando as portas estavam fechadas, para que você soubesse que seu corpo natural após ser semeado é ‘ressuscitado um corpo espiritual’, e que você não suponha que o corpo que é elevado seja um corpo diferente. (…) [A]o mostrar as marcas dos pregos mostra que é este mesmo corpo; entrando quando as portas estavam fechadas, Ele mostra que não tem as mesmas qualidades; o mesmo corpo para cumprir a obra da encarnação ressuscitando o que havia se tornado um cadáver, mas um corpo mudado para que não caia novamente na corrupção nem seja sujeito novamente à morte.”

São Anfilóquio de Icônio (403), citado em “Diálogo 2” de Teodoreto

“Convém perguntar como um corpo incorruptível mostrou as impressões dos pregos, e foi tangível por uma mão mortal. Mas não se perturbe; o que aconteceu foi uma questão de condescendência. Pois aquilo que era tão sutil e leve a ponto de entrar quando as portas estavam fechadas, estava livre de toda densidade; mas essa maravilha foi manifestada para que a Ressurreição pudesse ser crida e os homens pudessem saber que era o próprio Crucificado, e que outro não se levantou em seu lugar.”

São João Crisóstomo (347 – 407) (Homilia 87 em João)

“Além disso, ao atravessar portas fechadas, Ele exibiu o mesmo poder que ao desaparecer de vista. Linceu, como relata a fábula, costumava ver através de uma parede. Não poderia o Senhor entrar quando as portas estavam fechadas, a menos que Ele fosse um fantasma? Águias e abutres percebem cadáveres através do mar. O Salvador não veria Seus Apóstolos sem abrir a porta? Diga-me, mais afiado dos disputantes, que é maior: que pendure o vasto peso da terra em nada, e que a equilibre na superfície mutável das ondas; ou que Deus passe por uma porta fechada, e a criatura se renda ao Criador? Você permite o maior enquanto se opõe ao menor.”

São Jerônimo (342 – 420) (A Pamáquio Contra João de Jerusalém 37)

“O corpo do menino Jesus foi retirado do ventre de Sua mãe, ainda virgem, pelo mesmo poder que depois introduziu Seu corpo quando Ele era um homem através da porta fechada na câmara superior (Jo 20,26). Aqui, se o motivo do evento for solicitado, não será mais um milagre; se um exemplo de um evento similar for exigido, não será mais único. Concedamos que Deus pode fazer algo que devemos admitir estar além de nossa compreensão. Em tais maravilhas, toda a explicação da obra é o poder d’Ele por quem ela é feita.”

Santo Agostinho (354 – 430) (Epístola 137)

“Pois observe como, ao entrar inesperadamente quando as portas estavam fechadas, Cristo mostrou, mais uma vez, que Ele era por natureza Deus, e nenhum outro senão Aquele que havia morado entre eles; e também, ao descobrir o lado ferido de Seu Corpo, e ao mostrar a impressão dos pregos, Ele nos deu total satisfação de ter levantado aquele Templo de Seu Corpo que havia sido pendurado na Cruz, e de ter restaurado à vida aquele Corpo que Ele havia usado, subjugando assim a morte, que é devida a toda a carne, na medida em que Ele era por natureza Vida e Deus. (…) A entrada de nosso Senhor através das portas fechadas deve ser classificada, por homens sábios, com os outros milagres que Ele realizou.”

São Cirilo de Alexandria (376 – 444) (Comentário à João 20)

Compare as ações divinas, luminosas e sublimes, por um lado, e aquelas que ultrapassam claramente nosso medíocre estado, ou seja, o milagroso e o extraordinário, a manifestação de feitos milagrosos, tais como (…) a virgindade imaculada que permaneceu intacta antes, durante e após o parto (…) o livre acesso através das portas trancadas…”

Santo Sofrônio de Jerusalém (560 – 638) (Carta Sinodal do Sexto Concílio Ecumênico [Constantinopla III]: 2:3:16)

“O divino apóstolo diz: ‘é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade.’ (1 Co 15:53) E novamente: ‘O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos; semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual’ (1 Co 15:42-44), tal como era o corpo de nosso Senhor depois da ressurreição o qual passou por portas fechadas, não se cansou, não teve necessidade de comida, nem de sono, nem de bebida.”

São João Damasceno (676 – 749) (Exposição Exata da Fé Ortodoxa: Livro 4:27)

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