Os Pais da Igreja não discordam de Santo Agostinho — Florilégio

Introdução

A doutrina do pecado original é hoje frequentemente vista como uma doutrina que divide as Igrejas Orientais e Ocidentais. De acordo com o que é comumente divulgado, Santo Agostinho teria sido influenciado pelo “maniqueísmo” e feito uma má tradução de Romanos 5:12, e por isso formulou uma visão do pecado original no qual as crianças são pessoalmente culpadas do pecado de Adão, sendo condenadas ao inferno em virtude deste pecado pessoal, a menos que sejam batizadas. Os Padres Orientais, dizem alguns, supostamente se apegaram a uma visão totalmente diferente, enfatizando o livre arbítrio humano e que somente a morte (ou as “consequências do pecado original”) vem através de Adão, não tendo nenhuma participação ontológica no Pecado Original. Essa perspectiva é comumente desenvolvida por teólogos ortodoxos como o Pe. John Romanides. Buscando aqui uma análise mais detalhada em defesa de Santo Agostinho, veremos que os Pais da Igreja tradicionalmente sustentavam que toda a humanidade estava presente em Adão, que é um dos pontos principais de Santo Agostinho contra os Pelagianos. Essa posição é difundida tanto no Ocidente quanto no Oriente, anos antes de Agostinho e entre seus contemporâneos.


Santo Irineu de Lião (130 – 202)

“Não é somente pelo que foi dito, que o Senhor revelou a si mesmo e o Pai, mas também na sua paixão. Pois para destruir a desobediência original do homem que se deu por causa do lenho “se fez obediente até a morte e morte de cruz”, curando assim com a sua obediência sobre o lenho a desobediência que acontecera pelo lenho. Ora, não teria vindo destruir a desobediência feita ao nosso criador pela sua obediência se tivesse pregado outro Pai. Com efeito, foi justamente pelas mesmas coisas pelas quais não obedecemos a Deus e não cremos na sua palavra que reintroduziu a obediência a Deus e o assentimento à sua palavra. Mostrou claramente com isso o Deus que ofendêramos no primeiro Adão, não cumprindo o seu mandamento […], só éramos devedores com aquele de quem transgredimos, no início, o preceito, e de ninguém mais.”

Contra as Heresias 5:16:3.
Orígenes de Alexandria (185 – 253)

“[O]uça Davi falando: “Eis que eu nasci na iniquidade, minha mãe concebeu-me no pecado”, mostrando que toda alma que nasce de carne é poluída pela imundície “da iniquidade e do pecado”. Por esta razão podemos dizer o que já recordamos acima: “Ninguém é purificado da impureza mesmo que viva por apenas um dia.” A esse dizer pode-se acrescentar a razão pela qual é necessário, uma vez que o batismo da Igreja é dado para o perdão dos pecados, que, de acordo com a observância da Igreja, o batismo também seja dado a bebês; já que, certamente, se não houvesse nada em bebês que deva pertencer ao perdão e à indulgência, então a graça do batismo pareceria supérflua.”

Homilies on Leviticus, 1-16. Homília 8:5 (P. 157-158).
São Cipriano de Cartago (210 – 258)

“Tendo nascido segundo a carne, conforme Adão, [o infante] contraiu o contágio da morte antiga assim que foi concebido; o que lhe aproxima mais facilmente, por isso mesmo, da recepção do perdão dos pecados — que para ele são remidos, não seus próprios pecados, mas os pecados de outro.”

São Cipriano de Cartago, Epístola 58.
Tertuliano (155 – 220)

“Cada alma, então, em virtude de seu nascimento, tem sua natureza em Adão até nascer de novo em Cristo. Além disso, é imunda o durante todo o tempo em que permanece sem a regeneração.”

Tertuliano, A Treatise on the Soul em Ante-Nicene Fathers, Capítulo IX.
São Gregório de Nissa (335 – 395)

“O mal esteve desde o início misturado com nossa natureza… por intermédio daqueles que, pela desobediência, introduziram a doença. Assim como na reprodução natural das espécies cada animal gera outro semelhante, o homem também nasce do homem, um ser sujeito a paixões nasce de um ser sujeito a paixões, um pecador nasce de um pecador. Assim, o pecado instala-se em nós quando nascemos; cresce conosco e fica em nossa companhia até o fim da vida.”

On the Beatitudes, Or. 6. PG 44:1273, Apud. Patrística de J.N.D Kelly, P. 265.
Santo Ambrósio de Milão (339 – 397)

“Em Adão eu caí, em Adão eu fui expulso do paraíso, em Adão eu morri. Como Deus me chamará de volta, se me encontrar em Adão? Pois assim como em Adão eu sou culpado do pecado e devo uma dívida à morte, assim também em Cristo eu sou justificado.”

Funeral Orations (The Fathers of the Church, Volume 22), Segunda Oração (Da Fé na Ressureição), 6. P. 200
São CIrilo de Alexandria (376 – 444)

“Assim, a culpa da desobediência que vem de Adão foi remida; assim cessou o poder da maldição, e o domínio da morte foi levado à decadência. E isto também Paulo ensina, dizendo: “Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim pela obediência de um muitos se tornaram justos”. Pois toda a natureza do homem se tornou culpada na pessoa daquele que foi inicialmente formada; mas agora ela é totalmente justificada novamente em Cristo. Pois Ele se tornou para nós o segundo começo de nossa raça depois daquela primária; e por isso todas as coisas nEle se tornaram novas.”

Commentary on the Gospel of St. Luke, (New York: Studion, 1983), p. 171.

Comentários

Alguns comentários conclusivos serão pertinentes para expandir certas citações. Quando criticam a teologia agostiniana do pecado original, as pessoas normalmente criticam o ponto de vista da Confissão de Fé de Wesminster, a qual ensina que ipsis litteris o pecado individual de Adão é imputado ao pecador, tornando-o pessoalmente culpado deste, como se pode ver na CFW:

Sendo eles o tronco de toda a humanidade, o delito dos seus pecados foi imputado a seus filhos…

Confissão de Westminster, Capítulo VI:III.

Para Santo Agostinho, é uma participação ontológica em Adão que traz o pecado original (participação essa que o próprio não clarifica, apesar de a fazer usando 1Coríntios 15:22 e Romanos 5:12). Assim, há uma diferença entre a natureza culpada (que seria a culpa herdada) e a culpa do pecado pessoal: Santo Agostinho afirma que os recém nascidos possuem o primeiro, mas nega que possuem o segundo. Alguns parecem crer que ele afirma o segundo em contradição aos Pais, o que não é correto. Agostinho também falou de “imputação”, mas não tinha em mente a imputação imediata da culpa de Adão à humanidade, pois sua principal ênfase era na transmissão da corrupção do pecado. Este pecado é transmitido por propagação, propagando ao mesmo tempo o castigo e a consequência de seu pecado, que toda a humanidade carrega. As reivindicações de alguns como Romanides espelham de perto as dos Pelagianos: ambos negam a culpabilidade dos recém nascidos e a presença da humanidade em Adão, que são as principais proposições condenadas em Contra Juliano, de Santo Agostinho (que não dependerá da controvérsia da correta tradução de Romanos 5:12, como se pode ver nos Pais). A posição de Agostinho poderia ser resumida desta forma: Adão representa toda a humanidade, que “está” nele. Isso não significa, para Agostinho, que a culpa dele seja imputada aos seus descendentes, já que existe uma forma secundária de culpa, a herdada, que não é pessoal. Como resultado, todos os bebês nascem com culpa original, embora não seja pessoal: A “culpa” que o pecado original envolve é de responsabilidade, não de perpetração.

Santo Irineu ensina explicitamente a pessoa corporativa de Adão na Queda pois, em suas palavras, todas as pessoas ofenderam a Deus no primeiro Adão. Isto é muito próximo da opinião de Santo Agostinho de que todas as pessoas são “culpadas” em Adão. Mesmo que seja um breve comentário e não seja tão desenvolvido, é evidente ver que o germen da doutrina agostiniana já se encontra em Irineu, ao dizer que em Adão todos ofendemos ao Senhor, transgredindo “no início” Seu preceito.

No caso de Orígenes, como a própria nota de rodapé da página 158 (28) reconhece, o entendimento de Orígenes “sobre o batismo infantil nesta passagem é similar ao de Agostinho.” Orígenes expõe que as bebês nascem com algum tipo de mancha, essa que é distinta dos pecados pessoais. Ambos envolvem a recepção do perdão e da indulgência divina, mesmo que as crianças ainda não tenham “pecado atual”. Ao envolver não só uma ênfase medicinal mas também jurídica, Orígenes concorda que a mancha do pecado original envolve um demérito digno de certo grau de punição.

Tertuliano, por sua vez, testemunha o pecado original por meio de sua ênfase na pessoa corporativa de Cristo (em vista da regeneração) e em Adão (em vista da condenação). Isto mostra que a visão de Tertuliano sobre a personalidade corporativa de Adão é semelhante, embora subdesenvolvida, àquela de Santo Agostinho, mesmo que não diga explicitamente que o pecado original envolva em algum sentido culpa: em virtude de nosso nascimento, partilhamos da natureza caída de Adão. Essa perspectiva já é suficiente para se demonstrar estar na linha do pensamento de Agostinho.

Contemporâneo de Orígenes, São Cipriano também usa o batismo para provar a necessidade dos bebês de receberem o batismo para a remissão do pecado original. Cipriano diz que um recém-nascido “não pecou”, apesar dele ter contraído a “morte antiga”, se referindo ao Pecado Original. Então, no batismo infantil não são seus próprios pecados pessoais que são remidos (pois a criança não os tem), mas os pecados de outro (isto é, Adão). Isso é quase (para não dizer que é) idêntico ao que Santo Agostinho escreveria, também em Cartago, anos depois.

O breve comentário de São Gregório é especialmente profundo, apesar de requerer o devido esclarecimento, sendo importante complementar com suas outras obras como ele entende a nossa participação no pecado “de Adão”. São Gregório ensina que “que em nosso primeiro ancestral fomos expulsos…” do Éden (On Virginity, Capítulo XII). Em outro lugar usando d’uma pergunta retórica, ele desenvolve: “Quem a terra a mim trouxe? . . Quem submeteu os animais irracionais a mim? Quem me deu vida e mente quando eu era pó inanimado? Quem moldou este pó na imagem da forma divina? Quem trouxe essa imagem, distorcida em mim pelo pecado, de volta à sua beleza original? Quem me levou de volta à felicidade original quando eu fui expulso do paraíso, privado da árvore da vida e imerso na vida material?” (De Oratione Dominica, MPG 44:1125). O que seria isso se não for a identificação de nossa expulsão, dons originais, e restauração ao paraíso com uma participação em Adão? A questão da natureza humana (e, por consequência, nós) participar no pecado de Adão é perfeitamente expressado nessa passagem. De alguma forma, esse pecado de Adão foi nosso pecado, pois estávamos em Adão, assim como a punição de Adão é compartilhada por todos os que partilham de sua natureza. Isso é perfeitamente compatível com o que também diz Santo Ambrósio: os dois concordam que o pecado comum a todos os que compartilham a natureza humana é uma herança de todos os homens através do pecado de Adão, exprimindo perfeitamente a teologia agostiniana do pecado original: Adão representa a humanidade, a Queda faz com que se tenha uma natureza caída porque participamos da natureza de Adão. Cristo é o segundo Adão e oferece uma natureza humana redimida a todos os homens.

São Cirilo é claro ao ensinar que todos os homens recebem um castigo, sendo atingidos até a morte, por conta da natureza herdada de Adão. A punição implica em uma culpa para merecer receber essa punição. São Cirilo segue de perto Santo Agostinho quando diz que a “natureza humana foi condenada em Adão”, explicando que embora não estivéssemos “nele” no sentido origenista da preexistência da alma, participamos da natureza que foi condenada:

Você [Juliano] fala como se um ato maligno, também, tornasse culpada apenas a natureza. Na verdade, o culpado pela ação de um homem é o homem, mas o homem é uma natureza. Portanto, assim como os adultos se tornam culpados por uma ação pecaminosa, também os menores se tornam culpados através do contágio dos adultos. O primeiro se torna culpado pelo que faz; o segundo, por aqueles de quem se origina.

Contra Juliano 6:13

Conclusão

Meu artigo não teve a pretensão de ser exaustivo. Antes, quis demonstrar que a “teologia agostiniana” do pecado original é um terreno comum já presente nos escritos dos Pais muito antes de Santo Agostinho, não sendo algo estranho tanto ao Ocidente quanto ao Oriente. Para afirmar isso, faço aqui menção a certo artigo da autoria de Codex Justinianeus: “A Igreja Ortodoxa Ensina o Pecado Original? um Florilégio, desenvolvendo que essa perspectiva agostiniana é tida como canônica nas Igrejas Ortodoxas, citando teólogos respeitadíssimos na Ortodoxia como Simeão o Teólogo, Gregório Palamas, Nicodemus o Hagiorita, Filareto de Moscou e alguns outros modernos em concordância com o Doutor da Graça, além da recepção infalível das decisões do Concílio de Cartago (419) em Trullo (692), com menção especial aos Concílios tidos como infalíveis pelos ortodoxos: O Sínodo de Iași (1642) e Jerusalém (1672).

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